NATURALMENTE TECNOLÓGICOS

Quando se fala na relação homem-técnica, com freqüência penso naquela cena de abertura do filme “2001: uma odisséia no espaço”, em que pré-humanos de uma pequena tribo, até então mais parecidos com macacos do que com o humano, descobrem a sua primeira ferramenta: um pedaço de osso que, após ser experimentado pelo líder do grupo, batendo-o contra um monte de ossos no chão, despedaçando-os, passa a ser usado por ele como arma para vencer as brigas por territórios em torno de lagos.

Outro filme me leva a pensar em uma situação parecida: dirigido por Jean-Jacques Annaud, o excelente “A guerra do fogo” trata da descoberta do fogo pelo homem há 80.000 anos, um tempo histórico mais recente do que o de “2001…”; no documentário (uma recriação minuciosa do período histórico), as tribos, embora não dominassem completamente a criação do fogo, aprendem a mantê-lo aceso e passam a usá-lo mais ou menos com o mesmo intuito dos pré-humanos em “2001…”: preservação de vantagens adquiridas em relação a outros grupos ou tribos.

O aprendizado de uma técnica é, nesses exemplos, uma forma de sobrevivência e preservação de poderes e da vida. O que não difere muito daquilo que a tecnologia por si só significaria para nós. Aliás, esta clássica passagem de “2001…”, dirigido por Stanley Kubrick e baseado no livro homônimo do recentemente falecido autor Arthur E. Clark, é concluída com o macaco pré-humano, tendo vencido orgulhosamente sua primeira batalha com o uso de um pedaço do que parece ser um fêmur, lançando o osso no ar, para cima, que, girando em torno do seu próprio eixo é sucedido pela imagem, muitos milhares de anos depois (já em 2001), de uma espaço-nave que leva seus tripulantes a uma importante descoberta.

O que essa cena quer nos dizer, creio, é que a descoberta da ferramenta pelos pré-homens marca a “fundação” do humano.

Na verdade, precedendo a cena da batalha vencida com a nova arma, uma outra passagem havia mostrado os pré-humanos acordando ao alvorecer e se deparando com um monólito. Maravilhados e espantados com a anti-naturalidade do objeto geométrico, matemático, um bloco retangular de pedra perfeito, cor de grafite, mais ou menos três vezes maior do que a estatura humana, que aparece cravado no solo próximo ao local da batalha, os pré-humanos pulam e balbuciam, como que em reconhecimento de sua nova condição.

O monólito é simbólico e fundamental na narrativa, pois sugere que a descoberta da ferramenta está associada ao misterioso aparecimento do mesmo, que representaria uma racionalidade exterior à terra, uma inteligência desconhecida que de alguma forma interfere na existência do então pré-humano. Quem conhece o filme sabe que esta é apenas uma interpretação possível, dada a abertura de significados que ele produz no decorrer de toda a narrativa.

O que interessa mais, no entanto, é a sugestão de que a espécie humana, a inteligência e a tecnologia são conceitos indissociáveis. O ser humano não existiria sem a capacidade de transformar o mundo em tecnologias. Mas é fato que a tecnologia tem que ser pensada como mais do que uma extensão da nossa condição de seres dotados de inteligência e consciência. Porque enquanto sociedade, a tecnologia depende da — ao mesmo tempo que conforma a — cultura, esse extrato um tanto que abstrato de valores simbólicos, éticos, políticos etc. que permeia nosso cotidiano, nossa experiência de vida. Nesse sentido, a tecnologia deveria ser pensada — numa constante prática metalinguística — a fim de podermos “manipulá-la” para que a sociedade e a cultura caminhem em direções que nos interessam. Mas é claro que essa tarefa é extremamente complicada, dado que as direções que nos interessam enquanto sociedade são dificilmente um consenso.

Hoje, em um mundo de alta competitividade e constante criação de demandas técnicas, não se pode dizer que o desenvolvimento tecnológico se limite à sobrevivência e preservação da vida, como se pode ver em ambos os filmes. Há, no atual contexto capitalista, uma constante busca de um desenvolvimento tecnológico que transcende necessidades básicas, alcançando, como é bem sabido, um paradigma da técnica como forma de conquista de mercados, de capital, de controle e de sobreposição de poderes, assim como de libertação individual e coletiva.

Para assistir a esta passagem de “2001…”, vá aqui (parte 1) e depois aqui (parte 2)

Alemar S. A. Rena

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ]

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