Cena de Strange Love, de Kubrick —
Vivemos em um tempo em que os clássicos tendem a desaparecer. Ou a existir em escala diminuída. Afinal de contas, o clássico tem a ver com memória (e rememoração), com unicidade , originalidade e filtragem centralizada, todos conceitos em franca decadência no mundo atual. O fim dos clássicos pode estar representando o fim de uma era (ou vice-versa), o fim de uma forma de se fazer cultura, arte, economia e produzir sentidos.
O clássico tem a ver também com resistência ao tempo e tradição. Na verdade, a palavra “clássico” não se relaciona com esses termos diretamente; ela vem de “classe”, aquilo que é usado e ensinado nas aulas. Mas aquilo que é ensinado nas aulas — ou era, porque a dinâmica das salas de aula também vem se transformando — são aquelas verdades sedimentadas, aceitas amplamente por um grupo de pessoas autorizadas no assunto que selecionavam, ao longo de um tempo, o que valia a pena ser estudado (autores, fatos históricos, etc.) e aquilo que era genérico, de pouca valia. A idéia de clássico, na literatura, tem relação extremamente próxima com a idéia de cânone, que é um termo (originalmente encontrado nos contextos da hermenêutica religiosa) usado para descrever o grupo de obras imprescindíveis em determinada cultura ou gênero.
No lugar do “cânone”, da “tradição”, da “centralização”, da “unicidade”, vemos ganhar importância a “efemeridade”, “autoria coletiva”, “descentralização”, “sample”, “remix”, “criação em processo”, etc. Mas essa decadência não vem de hoje; ela tem início juntamente à modernidade e seus processos de industrialização e globalização. Os sécs. XIX e XX foram um tempo de desenvolvimento tecnológico sem precedentes na história. No turbilhão das descobertas e invenções, desenvolveram-se duas áreas que seriam os pilares da construção da aldeia global: os meios de transporte e os meios de comunicação em massa. Em uma lógica capitalista de apropriação de tecnologias e linguagens, nasce a cultura de massas, que, apesar de sua aversão à tradição e ao antigo em seu cotidiano, paradoxalmente continuava a produzir seus clássicos para as gerações futuras. Assim, embora uma escola de vanguarda e ruptura como a Bauhaus pregasse a inovação a qualquer preço, ou melhor, a um preço popular e acessível às massas, hoje suas peças (mobíliário, tipos gráficos, obras) são consideradas “clássicos” do design.
Mas já em 1930 o pensador alemão Walter Benjamin chamava atenção para alguns fatos interessantes a respeito da tecnologia e da cultura. Em seu texto seminal “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin nos mostrava como a arte se expandia de uma lógica da obra única para uma lógica da reprodutibilidade pelas novas técnicas de cópia que vinham sendo desenvolvidas. Benjamin se referia mais precisamente à fotografia e ao cinema, que mudariam para sempre outras áreas das artes visuais como a pintura. Duas características, principalmente, diferenciariam a pintura da fotografia e do cinema: enquanto um quadro era feito para não ser copiado, a fotografia e o cinema eram feitos para serem justamente reproduzidos em escala. Isso nos leva à segunda diferença: enquanto a pintura seria a arte de poucos para poucos, o cinema e a fotografia seriam a arte do povo. Benjamin acreditava que o cinema, caso conseguisse se libertar dos magnatas da indústria que à época já detinham grande poder, poderia se transformar numa ferramenta de invenção e comunicação do povo e revolucionar o mundo pela produção legítima de linguagens e significados menores, periféricos e/ou coletivos.
Mas é claro que o desfecho não saiu como Benjamin esperava. Embora as massas tivessem algum acesso a meios de produção, esse acesso foi durante muito tempo limitado, isto é, caro e de dificílima distribuição e exibição do produto. Além do mais, no rastro da liberdade e ruptura pregadas pelas vanguardas e condicionadas pelas tecnologias, se impunha em escala cada vez mais global uma mídia coorporativa para as massas, escolhendo quem, o que e como se deveria produzir linguagens e significados. Decidiam e ainda decidem em boa medida quem e o que será o clássico do amanhã, que já não se pauta apenas na opinião dos intelectuais e especialistas para existirem, aqueles que usavam a sala de aula para construir a imagem de um clássico. Agora conta-se também, e de forma crucial, com os meios de massa (e sua máquina propagandística), talvez hoje os maiores interessados na permanência e reprodução infinita de conteúdos considerados essenciais.
Num mundo em que a disponibilidade de informação se encontra cada vez mais diversificada — fontes de conteúdo vão desde as milhões de páginas da Internet, das milhares de músicas ou vídeos do iPod do amigo, as inúmeras revistas semanais da banca, passando pelas mega livrarias ou as lojas online como a iTunes, a Livraria Cultura ou a Amazon, com catálogos intermináveis — a construção de um clássico, seja em classes, seja na mídia, se torna cada vez mais difícil e menos importante. A comunicação em rede, na medida que avança, desconstrói também formações de centros de significação e produção de linguagens, dinamiza as comunidades e aproxima as pessoas de si mesmas e dos outros, não como massa, mas como coletividade ativa e mais autônoma.
Por outro lado, a indústria do conteúdo busca abranger e explorar todas as formas de produção de significado. O oposto da glorificação do clássico, no seu sentido ruim, é a glorificação da novidade pela novidade, pelo consumo e pela carência de formas mais úteis de aplicação intelectual. Não se pode resumir a velocidade, a leveza, a dinamicidade, a multiplicidade que interessa a uma atitude contemporânea e transformadora a uma adequação à última tendência. Embora tal adequação pareça se opor ao clássico repetido em escala infinita, ela é na verdade um lado da mesma moeda, uma submissão a esquemas pré-dispostos.
Por fim, é preciso dizer que a releitura do passado e seu conhecimento pode assumir grande importância na medida que nos ajuda a entender e a construir quem somos hoje.
É claro que estamos em uma fase de forte transmutação de valores, mas há ainda uma boa dose de imprevisibilidade no que diz respeito ao quanto avançaremos, nesse cenário contemporâneo marcado pelas formas de ação em rede, pela velocidade e pela multiplicidade, em direção a uma sociedade mais inventiva, humana e democrática, como desejava Benjamin.
Alemar. S. A. Rena
[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ, republicado aqui com pequenas alterações]