ENTREVISTA COM FERNANDO AMERICANO

Chrysler Peapod —

Poucos sabem, mas houve um momento na história da indústria automobilística em que a eletricidade era uma real candidata a se tornar a fonte de energia padrão nos veículos. Não estou falando do período atual ou recente, mas de 120 anos atrás. Embora veículos com motores elétricos tenham sido produzidos em escala então, o uso da gasolina produzida a partir do petróleo se mostrou mais eficiente por uma série de razões, mas principalmente pelo custo mais baixo de produção do motor de combustão interna e pelo fato de dispensar constante recarga de baterias, podendo ser usada em deslocamento de maiores distâncias. Mas o motor a eletricidade tinha suas interessantes vantagens: não vibrava, não produzia barulho, era fácil de dar partida (o carro a gasolina usava uma manivela) e não cheirava mal. Estas vantagens sem mantêm até os dias atuais.

Hoje, estamos às voltas com novas pesquisas na área de energia e possibilidades de escolhas similares, mas movidos por razões bastante diferentes. Tem ficado cada vez mais evidente que, dada a atual velocidade de crescimento da população mundial e do consumo per capta, o planeta que nos abriga não suportará por muito tempo se não repensarmos nossas tecnologias, hábitos de consumo e sistemas de produção. Ou melhor, o planeta vai suportar e provavelmente vai se recuperar em pouco tempo caso sejamos extintos por nossa própria incompetência, esgotando as fontes que nos mantêm vivos e em condições de usufruir de nosso modelo de mundo desenvolvido: água potável, solo para produção de alimentos, oxigênio, atmosfera em equilíbrio e energia. Em suma, nosso modelo civilizatório, desenvolvimentista e tecnológico está caduco e sua reforma se mostra como o maior desafio a curto, médio e longo prazos.

Mesmo com todo o avanço tecnológico alcançado, ainda não fomos capazes viabilizar comercialmente, por exemplo, carros movidos a motores elétricos sem que façamos uso de outra energia mais poluente, como o biodiesel ou o petróleo, concomitantemente. O álcool brasileiro se mostra como uma solução interessante para o Brasil a curto prazo, mas insuficiente para se enfrentar o problema das pesadas emissões de CO2 e do efeito estufa, que ajuda a elevar a temperatura atmosférica no planeta, oferecendo fortes indícios de que podemos ter que lidar com condições extremas de mudanças no ecossistema, acarretando em prejuízos naturais e materiais incalculáveis e talvez irreparáveis.

Dada a importância destas questões no nível da tecnologia e da cultura, converso, por e-mail, com Fernando Americano, mestrando em estratégias de comunicação para mídias informatizadas pela Sorbonne, em Paris, onde vive e trabalha como relações públicas de uma importante montadora de automóveis. Fernando nos fala sobre o lugar do álcool brasileiro, do momento atual da indústria automobilística na Europa e como isso tem a ver com tecnologia e, porque não, cultura. (Entrevista feita em 2009)

 

Alemar Rena: Quais são as perspectivas do biodiesel brasileiro hoje enquanto alternativa ao petróleo no mundo? Porque o álcool brasileiro não chegou de fato à Europa?

Fernando Americano: As perspectivas do álcool, biodiesel ou de qualquer outro bio-combustível enquanto alternativa ao petróleo na Europa são próximas de zero. Há muito busca-se uma alternativa ao petróleo, por duas razões principalmente: diminuir a dependência em relação aos países produtores de petróleo e reduzir o nível de emissões na atmosfera. Os biocombustíveis não atendem à segunda demanda. Embora poluam menos que os derivados do petróleo, são ainda bastante poluentes e a meta dos governos Europeus hoje é emissão zero. Apesar disso, não podemos afirmar que tenha sido essa a razão pela qual o álcool brasileiro não tenha chegado à Europa. Esta é uma escolha que não depende só dos fabricantes de automóveis ou do público consumidor. Sem ajuda dos governos para se criar infra-estrutura e conceder benefícios, nenhum combustível irá emplacar.

Naturalmente esta não é apenas uma escolha técnica, é também política. Dentro deste raciocínio qualquer tecnologia teria potencial para substituir o petróleo, desde que fosse adotada, ou melhor, apadrinhada, pelos governos europeus. Acredito que o álcool e o biodiesel teriam sido ótimas alternativas há 10 ou 15 anos. Acredito também que se o governo Brasileiro tivesse tentado promover estes combustíveis naquela época poderia ter tido algum sucesso. Hoje em dia as exigências em termos de emissão são outras e as tecnologias concorrentes evoluíram muito. Além disso, as escolhas já foram feitas. Uma mudança estrutural dessa grandeza não é promovida da noite para o dia, as decisões já foram tomadas há alguns anos para que sintamos os reflexos já num futuro bastante próximo. A maioria dos investimentos em infra-estrutura e dos incentivos fiscais concedidos pelos governos europeus estão sendo feitos no sentido de viabilizar a eletricidade como o substituto do petróleo. Se o governo brasileiro tinha a intenção de promover o biodiesel enquanto alternativa na Europa, chegou tarde.

Alemar Rena: Não há futuro para o biodiesel e para o álcool na Europa?

FA: Não é bem assim. Acredito que no futuro utilizaremos uma maior diversidade de combustíveis. Qualquer iniciativa que diminua a dependência do petróleo já ajuda. Etanol e biodiesel já são utilizados em alguma escala na Europa e alguns países já adicionam etanol à gasolina a exemplo do que ocorre no Brasil. Acredito até que veículos flex possam ser introduzidos no mercado europeu com algum sucesso, mas penso que estas são todas iniciativas pontuais, limitadas a uma pequena porcentagem da frota apenas. Não acredito que estes combustíveis tenham potencial para serem a grande matriz energética das próximas décadas, emissões de CO2 e mobilidade serão dois conceitos cada vez mais distantes um do outro.

Alemar Rena: E porque você acredita que os veículos elétricos serão os escolhidos como alternativa?

FA: Existe uma preocupação muito grande na Europa hoje quanto às emissões de gases causadores do efeito estufa. A União Europeia, grande defensora do protocolo de Quioto, estabeleceu rígidas metas para redução dos níveis de emissões. Hoje, para se licenciar um carro na maior parte dos países da Europa paga-se uma taxa de acordo com o nível de emissões de cada automóvel. Existe ainda uma proposta em trâmite na Comissão Europeia para unificar os impostos sobre veículos automotores e esta unificação tarifária seria feita justamente com base nos níveis de emissões. Neste contexto faz muito mais sentido optar por uma energia não poluente.

Além disso tem a questão da estrutura. Optar por um combustível como o álcool ou o biodiesel significaria profundas mudanças estruturais, incluindo a criação de novas refinarias, novas áreas para plantio, etc. Os biocombustíveis enfrentam certa resistência por parte da comunidade científica e de algumas ONG’s que demonstram preocupação com a possível transferência de áreas antes destinadas ao plantio de alimentos. Já com a eletricidade a estrutura está pronta. Parte do que é produzido pela rede elétrica acaba sendo jogado fora nos momentos de baixa demanda. É lógico pensar que a maior parte dos proprietários de veículos elétricos iria carregar seus carros durante a noite, justamente fora dos períodos de pico. Em outras palavras, uma frota de veículos elétricos pode achatar a curva da demanda tornando o uso da rede elétrica mais eficiente.

Alemar Rena: Mas o processo de produção de eletricidade pode ser também poluente. Até que ponto os carros movidos a eletricidade são realmente mais limpos?

FA: Claro, quando falamos em eletricidade ela pode vir de várias fontes. Desde fontes realmente limpas como a solar ou a eólica até fontes extremamente poluentes como as usinas termoelétricas, que respondem por mais de 40% da eletricidade gerada no mundo. Um recente estudo feito pela universidade de Stanford criou um ranking das fontes de energia mais agressivas à natureza. Este estudo tenta estimar qual seria o impacto causado por diversas fontes de energia se cada uma dessas fontes fosse utilizada como a única força motriz dos automóveis em circulação nos Estados Unidos. O estudo concluiu que a combinação veículos movidos a eletricidade + eletricidade eólica é a menos agressiva ao ambiente. A combinação veículo elétrico + usinas termoelétricas ficou em quarto no ranking. As duas últimas posições entre as 12 combinações estudadas foram ocupadas pelos veículos movidos a etanol produzido a partir do milho e da celulose respectivamente. O etanol produzido a partir da cana de açúcar não foi incluído no estudo mas podemos concluir que, mesmo considerando sua maior eficiência, o impacto de sua utilização em larga escala seja semelhante aos dos etanóis feitos a partir do milho e da celulose.

Alemar Rena: Como vem sendo as reações do europeu comum em relação ao aumento da temperatura global? Quais mudanças são observadas nas grandes cidades européias no cotidiano das pessoas?

FA: Acho que o europeu tem um senso de coletividade mais desenvolvido que o nosso. Eles têm mais consciência que suas ações, por menores que sejam, repercutem em toda a sociedade. Pequenos gestos que ainda estão longe de se tornar hábito no Brasil estão presentes no cotidiano de qualquer europeu, como por exemplo não utilizar sacos plásticos nos supermercados ou reciclar o lixo. O mercado de automóveis reflete essa tendência. As vendas de SUV’s e 4×4 vem despencando vertiginosamente, enquanto carros pequenos como o Smart, Mini e Fiat 500 fazem um enorme sucesso. Naturalmente o preço do petróleo e as sobretaxas a que estão sujeitos os carros maiores também influenciam, mas, enquanto no Brasil muitos sonham em ter uma Cayenne, aqui na Europa é o Mini Clubman que faz girar os pescoços.

Alemar Rena: E nas grandes empresas ou instituições?

FA: É natural, em um ambiente onde haja uma consciência ecológica maior, que as empresas se preocupem em tomar atitudes ecologicamente corretas. O objetivo final de toda empresa é e será sempre o lucro, mas há muito tempo elas perceberam que o ecologicamente correto pode ser também lucrativo.

Alemar Rena: Carros movidos a eletricidade são comuns hoje nas ruas de Paris e outras grandes cidades? Qual é a projeção e plano a curto e médio prazo para uso de carros elétricos na Europa nos próximos anos? E para o Brasil?

FA: Veículos movidos a eletricidade não chegam a ser comuns na Europa, mas estão longe de ser raros. Existe uma oferta razoável de micro carros elétricos e pontos de recarga já podem ser vistos nas grandes cidades. Além disso há os veículos híbridos, que combinam a eletricidade à combustão interna. Os híbridos já são relativamente comuns nas grandes cidades européias. Ao se tomar um taxi em Paris, você tem grandes chances de montar em um Toyota Prius (que já está indo para sua terceira geração) ou em um Honda Civic híbrido.

Voltando aos veículos puramente elétricos, praticamente todos os grandes fabricantes de automóveis planejam lançar pelo menos um modelo movido a eletricidade antes do final de 2010. Em 2012 uma parcela, pequena, mas significativa, dos veículos vendidos na Europa, Japão e Estados Unidos será movida a eletricidade. Não estamos falando de um futuro distante, estamos falando de um espaço de três anos apenas. Acredita-se que, em 2020, 10% de todos os veículos vendidos no mundo utilize a eletricidade como fonte de energia.

Já para o Brasil acho difícil termos algum veículo movido a eletricidade antes de 2015. Estamos indo na contramão das tendências dos países desenvolvidos, enquanto o mundo (até mesmo os EUA) procura carros menores, nosso mercado de SUV’s nunca esteve tão aquecido.

Alemar Rena: Há outras reais possibilidades de uso de energia mais limpa no transporte para além do álcool, da eletricidade e do petróleo?

FA: Naturalmente existe muita pesquisa em andamento e existem outras possibilidades como os veículos movidos a célula combustível (tecnologia que utiliza o hidrogênio e o oxigênio para gerar eletricidade), ou os veículos movidos a energia solar. Mas no momento apenas os veículos alimentados por bateria de íons de lítio e movidos a eletricidade é que estão próximos de ser comercialmente viáveis. Os veículos movidos a energia solar possuem ainda uma performance deficiente e os veículos a célula combustível são ainda muito caros.

Para mais informações sobre a história dos motores elétricos, visite (em inglês): http:// inventors.about.com/library/weekly/aacarselectrica.htm Alemar S. A. Rena

 

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ, em Março de 2009, atualizada em 2011]

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