Foto: Marcelo Maia //
A palavra cultura é de origem latina, quando estava ligada às atividades agrícolas; vem do verbo latino Colere que quer dizer cultivar. No entanto, seu significado atualmente parece bem complexo. Ampliando seu sentido, seríamos levados a crer que a cultura deveria ter alguma relação com a idéia de formação ou construção de um tecido polifacetado de relações sociais, simbólicas, técnicas, epistemológicas etc. das quais um povo poderia se apropriar para diversos fins.
Mas hoje a cultura seria, talvez em sua forma mais contundente, o plano pelo qual instituições economicamente guiadas se apropriam do conteúdo intelectual e o transforma em produtos para o comércio. Assim, a idéia de cultura passa a ter estreita relação com a dimensão social pela qual se manifestam relações de poder de ordens midiáticas, econômicas, estéticas e sociais.
Infelizmente, percebe-se que a divulgação de informação nos meios de massa não cultiva primariamente um repertório diversificado, democrático, dinâmico de possibilidades estéticas e conceituais, mas a perpetuação de formas (ou fórmulas?) que são eleitas para serem transformadas em propriedades privadas e comercializadas em grande escala. Convivemos assim com uma pletora de referências simbólicas e conceituais que não refletem a diversidade, a vontade interativa e participativa do corpo social. Poder-se-ia argumentar que é justamente a repetição, a comodidade e a não-interação que os espectadores dos meios de massa aspiram. Mas acredito que não. Tal argumentação parece falsa, pois não há vontades essenciais e intrínsecas a um espectador/leitor; ele, a maneira como seu cérebro está arranjado, o que deseja, os valores que preza e como age é em grande parte construção do meio e atualmente da própria indústria da informação de massa um-todos (as TVs, os jornais, as revistas, as rádios tradicionais).
Assim, quando, por exemplo, um diretor de uma novela defende a superficialidade dos debates que propõe dizendo que respeita os desejos e a capacidade de aprofundamento de seu espectador, tal diretor ignora que, neste contexto, a massa já se encontra no estado de, como propuseram os pensadores Adorno e Horkheimer já na década de 40, “sociedade alienada em si mesma”, resultado do “círculo da manipulação e da necessidade retroativa” implementado pelos próprios meios. Seus desejos ou sua capacidade de refletir sobre temas complexos em sua complexidade são em certo nível resultantes da própria qualidade da novela que este espectador assiste há anos e que lhe serve muitas vezes como principal fonte de reflexão sobre tais temas. Obviamente, tal discussão não tem nada a ver com a questão de que devemos ou não deixar de ver novela. Assistir à novela ou não assistir é uma falsa questão; o problema surge quando a discussão da novela das oito sobre o clone humano ou sobre a tensão racial vira o único palco de debate de temas tão sérios (quando muito acompanhada de rapidíssimas e superficiais exposições sobre o tema em um telejornal diário), para uma enorme fatia da população em um país que precisa tão urgentemente refletir sobre tantas realidades emergenciais e complexas ao mesmo tempo.
O que se tem hoje, portanto, é um estado de coisas (do qual a novela é apenas um exemplo) que faz com que a informação que chega até a esmagadora maioria seja precária. Então onde exatamente está o problema?
A indústria de conteúdo almeja o lucro máximo a partir de um custo mínimo. O comprometimento com a qualidade conceitual vira luxo entre estes meios centralizados. Para estas empresas é preciso a todo custo ampliar a massa de potenciais consumidores vendendo conteúdos cada vez mais baratos e facilmente reconhecíveis e assimiláveis. E a cultura? A cultura vira refém desta situação. A cultura, em seu sentido mais amplo hoje, passa a ser aquilo que é difundido por este esquema.
Creio que há um vácuo no segmento de publicações culturais de menor fôlego mas justamente mais independentes, experimentais e refletivas. Penso que esta pode ser uma das saídas (juntamente da descentralização radical oferecida pela Web, é claro) para o atual quadro. Precisamos de muito mais exceções. Precisamos valorizar mais e mais a informação menor, livre e crítica; precisamos nos desapegar um pouco do vício do dado desconectado, inútil, ligeiro, propagandístico ou estrangeiro e nos voltarmos mais para o entorno, para as questões fundamentais da nossa sociedade, e para as perguntas. Precisamos precisamente perguntarmos mais. E creio que isso não significa ser “cabeça”, chato, mas carregado de força transformadora, propositiva, inventiva.
Alemar S. A. Rena
[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ]