Leia apresentação de Eduardo de Jesus do livro Do autor tradicional ao agenciador cibernético: do biopoder à biopotência, que lancei pela editora Annablume (SP, 2009).
Alemar Rena —
Onde está o autor? Texto: Eduardo de Jesus
O autor e a autoria, assim como os complexos processos sociais, econômicos, políticos e culturais detonados por essas instâncias, marcam, de alguma forma, a produção cultural. Tanto aquela mais arraigada nas tradições cristalizadas ao longo do tempo, quanto as mais contemporâneas, viabilizadas, entre outros, nos produtivos e tensos encontros com o ambiente digital, as redes telemáticas e seus potentes processos de territorialização e desterritorialização. Além das formas culturais que já conhecíamos, passamos a experimentar outras situações, tensionamentos e derivações na produção artística e cultural contemporânea. Essas passagens são motivadas, entre outros fatores, pelo modo como nossas formas de produzir e experimentar a cultura passaram a se ligar também a toda uma base tecnológica que altera os processos de subjetivação, as formas de presença e a circulação de bens culturais.
Se tomarmos uma vertente mais pessimista poderíamos certamente pensar em torno de um colapso cultural, de uma espécie de fim da cultura. No entanto, o mais sensato é pensar que com os meios digitais estamos estabelecendo não uma cultura ou lógica cultural, mas uma metacultura, como afirma Jean-Louis Weissberg, “com incidências contraditórias movimentando dinâmicas menos legíveis que parecem a primeira vista”. É preciso estabelecer uma nova perspectiva que consiga dar visibilidade às contradições e paradoxos desse contexto cultural que vem sendo aos poucos construído e acoplado à lógica tradicional. Não se trata de empreender uma tentativa, quase inocente, de uma possível situação apaziguante e pouco crítica, mas buscar através de reflexões, experiências e enfretamentos típicos da vida social contemporânea algum indício que sinalize o que vem sendo alterado e como. Não há mais volta. Nosso envolvimento com as diversas tecnologias, nas muitas dimensões e instâncias da vida social, não permite mais um recuo.
Alemar Rena parte desses mesmos questionamentos e possibilidades abertas pela tecnologia para tentar decifrar os caminhos e descaminhos pelos quais a figura do autor atravessa na paisagem cultural contemporânea. Nessa sociedade nitidamente marcada pela intensa infiltração do capital nas relações sociais e pela forte incidência das diversas tecnologias no cotidiano mais ordinário é que nascem situações culturais que podem nos levar a criar, como afirmou Guattari, uma era “dissensual pós-midiática”.
Longe das dicotomias e das visões estanques, Rena nos propõe uma reflexão – um “pulsar investigativo” – em torno das relações de autoria na contemporaneidade, especialmente aquelas mais ligadas ao ambiente telemático. Com uma verve de natureza transdisciplinar, Rena desenvolve as linhas de força que criaram e deram sustentação à idéia da autoria, numa espécie de “arqueologia do autor” convocando o pensamento de teóricos como Bakhtin, Barthes, Eco, Rorty, Fish e Compagnon entre outros. Foucault, Deleuze e Guattari são também autores centrais nessa reflexão. De Foucault, Rena aborda o seminal “O que é um autor”, que serve de referência para um profícuo diálogo com as noções desenvolvidas pelo autor e os desdobramentos atuais no domínio do capitalismo cognitivo. Da mesma forma as noções dos processos de subjetivação de Guattari e os agenciamentos maquínicos de Deleuze dão corpo à reflexão que se inclina na descrição de um cenário dinâmico e sempre em conflito.
Nesse cenário são colocadas em jogo as diversas formas de controle que orbitam na produção cultural, os circuitos de legitimação gerenciados pelos meios de comunicação de massa e as alterações nos sistemas de distribuição como alguns dos pontos que favorecem o surgimento do “ciberagenciador”, uma outra forma, ainda mais instável, que o pólo da autoria assume na contemporaneidade. Nesse pólo, em distintas configurações individuais e coletivas, amplia-se o grau de complexidade da autoria, que passa a fazer parte de um processo de territorialização e desterritorialização típico das redes telemáticas. Em sua reflexão, Rena explora as situações em rede como as webarts e outras off line como o tecnobrega de Belém do Pará e seus cd´s oficiais e piratas ao mesmo tempo. Essas manifestações, por mais distantes que sejam, fazem parte de uma outra forma de agenciamento, que freqüentemente é coletivo, aberto e bastante fluido ultrapassando as restrições da cultura de massa e da própria tradição cultural, dando lugar a uma outra forma de autoria, que circula entre novos arranjos de operadores e circuitos.
A reflexão empreendida por Alemar Rena nos mostra um trajeto aberto, com a descrição de diversas experiências, no qual podemos perceber que as práticas culturais contemporâneas são reconfiguradas em movimentos de contaminação e sobreposição. Durante o trajeto as situações podem mudar nos mostrando as instabilidades inerentes ao ambiente da rede telemática. Não há estabilidade neste contexto e talvez por isso Rena fale de trajetos. Essa opção, longe de reduzir a questão colocada acaba por ampliá-la ainda mais questionando os limites da autoria e da figura do autor. Esse trajeto-processo dá contorno a um pensamento que cria suas definições na urgência do movimento, na fluidez das interações mediadas e no confronto criador com uma paisagem cultural absolutamente contraditória que se desenvolve diante de nós.
Eduardo de Jesus é graduado em Comunicação Social pela PUC Minas, Mestre em Comunicação pela UFMG e Doutor pela ECA/USP. É professor da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas. Faz parte do Conselho da Associação Cultural Videobrasil.