The author has to work as the agent of the masses. He can lose himself in them only when they themselves become authors, the authors of history.
Hans Magnus Enzensberger —
Colocado de uma forma simples e direta, pode-se dizer que, invariavelmente (ou quase?), entre o criador e a criatura existe técnica e tecnologia. Este fato nunca foi tão determinante, nem para se pensar a figura do criador, nem para se pensar a criatura (isto é, a obra, o produto criado), como hoje.
Mas ao longo da história, principalmente nos últimos 100 anos, as ferramentas no universo da criação vêm se complexificando. Na música, por exemplo, teríamos, em uma escala temporal: o uso do corpo (palma, o pé, os sons guturais, etc.), a palavra, instrumentos rústicos como tambores, instrumentos sofisticados como o violão celo ou o saxofone, as partituras, a gravação analógica, instrumentos elétricos e instrumentos e gravação/produção virtuais/digitais. Cada uma dessas etapas históricas correspondem a uma série de outros rearranjos sociais, econômicos, políticos.
Mas dentre todas essas etapas, atualmente a revolução digital é a que mais interessa – senão porque representa a maior mudança histórica na forma como nos comunicamos desde a escrita ou o nascimento da imprensa com Gutenberg (cuja importância para o renascimento europeu é patente) – simplesmente porque ela é a marca do nosso tempo e perpassa as mais diversas atividades artísticas ou cotidianas. A complexidade ferramental oferecida pelas produções digitais não encontra ecos na história humana. Pela primeira vez a importância dada ao criador passa a ser sistematicamente dividida com outros, sejam eles programadores de ferramentas digitais, sejam eles remixadores das produções digitais em circulação.
A problematização social e política da figura do autor-criador levada a cabo ao longo do séc. XX por pensadores como Roland Barthes e artistas como Duchamp, ganha novos contornos perante os fenômenos contemporâneos. O pensador francês Jean Baudrillard certa vez disse: “Se um indivíduo morre sua morte é um acontecimento considerável, enquanto que se mil indivíduos morrem, a morte de cada um é mil vezes menos importante”. Hoje percebemos algo análogo. Com a tomada de território surpreendente da cibercultura, onde um usufruidor de conteúdos e informações facilmente se transforma em produtor, o Autor, com “a” maiúsculo, se torna a exceção. Milhões de pequenas vozes emergem. Se fica mais fácil falar, fica igualmente mais difícil ser ouvido em grandes escalas. Mas já não podemos falar somente de corpos, indivíduos, mas de uma multidão, uma voz coletivizada; a potência está no acontecimento emergente dos infinitos nós. O grande evento está no conjunto de pequenos movimentos mais autônomos, e não mais na figura centralizada de um grande autor ou na forte atração de algum produto da inventividade.
Assim, na Web não interessa tanto o fato de que um produtor de conteúdo possa usar um apelido para conversar com esse ou aquele internauta, publicar neste ou naquele site; a anonimidade vai interessar ao internauta especialmente porque não faz diferença se ele usa seu nome real ou se usa uma identidade virtual. É essa indiferença que distingue um autor cibernético de um autor tradicional. Indiferença que se faz sentir nas webartes colaborativas, nas redes peer-to-peer e suas incessantes trocas ilegais de propriedade intelectual, nos assíduos leitores de blogs de anônimos, na troca esquizofrênica de imagens nos fotologs, nos milhares de arquivos que carregam os iPods, nas ajudas recíprocas das comunidades virtuais, na aversão à propriedade intelectual do copyleft, na desconstrução hierárquica, no desinteresse pelas categorias estanques, etc.
A relação homem-máquina
No entanto, no ato da criação e no uso cotidiano, a ferramenta não cessa de automatizar o corpo, de lhe impor os gestos repetitivos e não adaptativos que ela demanda. Veja-se a língua, uma das tecnologias mais complexas que temos. Sobre ela, dirá Barthes: “assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar […], é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada.” Mas Barthes também lembrará que é na trapaça, na esquiva da estrutura da língua que a literatura se inscreve enquanto “revolução permanente da linguagem”.
Da mesma forma, é nas margens de indeterminação dos algoritmos, dos códigos, dos comandos, das funções que os softwares e hardwares carregam, que o produtor cibernético vai realizar sua invenção. O artista-programador irá ainda mais além ao criar suas próprias ferramentas a partir de outras. Como aponta o pesquisador Arlindo Machado “o que faz o verdadeiro poeta dos meios tecnológicos é justamente subverter a função da máquina, manejá-la na contramão de sua produtividade programada”.
Certamente a produção contemporânea traz profundas marcas dos plug-ins e dos presets dos softwares, estampando em muito do que vemos cotidianamente padrões e repetições. (É claro que, antes, grande responsável é a homogeneização conceitual que a mídia e o mercado produzem). Mas os softwares, ao oferecerem aberturas nas suas possibilidades complexas de combinação e manipulação de informação (vide a música eletrônica, um dos bons exemplos), certamente criam espaços potentes para se colocar em prática grande liberdade na construção de linguagens e significados.
É interessante notar que, tanto no sentido da predefinição de possíveis linguagens, quanto na abertura permitida para a combinação e edição, a autoria se inicia na concepção da ferramenta e suas constantes atualizações, e por essa razão deve ser considerada compartilhada. Apontar autores únicos para obras digitais se torna uma tarefa difícil, visto que a criação com a máquina se faz em um entre-lugar, entre as habilidades artísticas do usuário dos aplicativos e as habilidades inventivas dos programadores que prevêem os usos potenciais que um software carrega (a interface, os algoritmos, as soluções de programação, o dimensionamento do potencial criativo, o potencial de flexibilização dos usos, etc.).
Se o criador, no nível da linguagem, marca sua importância, pois sua postura determina uma maior ou menor sujeição às pré-determinações da ferramenta, ele, enquanto ciberagenciador, não deixa de apresentar profundos contrastes nos âmbitos econômicos, sociais e políticos em relação ao autor tradicional como bem conhecemos ao longo dos últimos séculos, graças às complexas linguagens de programação que condicionam a Web e suas formas de comunicação e compartilhamento de conteúdo intelectual e inventivo. Na anonimidade confortável que insurge desses processos em rede parece estar uma resistência à lógica da propriedade conceitual, ao culto do estrelato, ao comércio como único fim imaginável; não uma nova racionalidade mas um “novo cenário de diferentes atos racionais – um horizonte de atividades, resistências, vontades e desejos que recusam a ordem hegemônica, propõem linhas de fuga e forjam outros itinerários alternativos”, dirão Michael Hardt e Antonio Negri.
Alemar S. A. Rena
[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ. O título original no jornal foi Nem criador, nem criatura, o meio]