A BREVIDADE DA ANONIMIDADE

Na foto: The Mobee —

Numa análise automática de faces da minha biblioteca de fotos digitais, das 231 imagens que o Google Picasa apontou espontaneamente como sendo de uma amiga, 227 estavam corretas. Errou apenas 4, em que a confundiu duas vezes com sua irmã, e duas vezes com sua prima, muito parecida com ela. No meu caso, o software me identificou em 311 imagens corretamente.

Nós, que já estamos acostumados a sermos superados pelo computador em áreas que envolvem raciocínio lógico e cálculos, podemos começar a nos preparar para coisas dessa natureza, viver com uma máquina que reconhece sua mãe em fotos mais rápido e eficientemente que você.

Caminhamos cada vez mais para uma encruzilhada entre o que queremos manter privado e o que queremos ou precisamos compartilhar. Não é uma questão nova, e imagino que, quando Napoleão decidiu numerar as casas para melhor controlar as multidões na França do séc. XIX, ela lá já se instalava. A novidade é que a privacidade hoje vem sendo renunciada por uma considerável parte das pessoas na expectativa de se obter em troca vantagens e aperfeiçoamentos nos serviços oferecidos pelas empresas, principalmente nas diversas redes da Internet.

Sabendo onde me encontro, por exemplo, o robô virtual da Google (o Googlebot) pode responder com muito mais precisão a uma pesquisa qualquer no seu Google Maps sobre, digamos, serviços de chaveiros. Ou ainda, usando tecnologias semelhantes às do Google Picasa, o software de reconhecimento de faces do Facebook pode, por exemplo, me dizer (ou dizer aos meus amigos) automaticamente em que imagens em sua vasta rede minha face se encontra presente.

Zigmunt Bauman recentemente escreveu para o Guardian um artigo sobre o assunto intitulado “Is this the end of anonimity?” Nele avalia como, de micro-drones à internet, a tecnologia invade a esfera privada com nosso encorajamento. Os micro-drones, máquinas desenvolvidas com fins militares para sobrevoar e espionar uma determinada área geográfica, estão hoje super avançados, e chegaram ao tamanho de insetos. Isto é, existem hoje tecnologias suficientemente sofisticadas não só para identificar sua face em meio a uma multidão sem muita dificuldade, mas também para gerar insetos voadores que podem coletar dados e os enviar a um banco de dados. Se você acha que estou exagerando, baixe o Picasa e faça o teste. E assista ao vídeo acima.

Uma consequência para a qual Bauman chama atenção é o aumento da indiferença do público, especialmente nos EUA, em relação às guerras, uma vez que progressivamente menos vidas (do lado daqueles que detêm a tecnologia bélica) são colocadas em risco. No Afeganistão, por exemplo, mais de 1.900 insurgentes foram mortos com o apoio de drones. Outras radicais possibilidades são entrevistas com o uso destes objetos inteligentes enquanto estratégia de espionagem; imagine se cada mosquito ou pássaro no mundo puder, inadvertidamente, ser um objeto de bisbilhotagem nas mãos do Estado ou de criminosos.

Na publicidade, a subversão da anonimidade ao estilo “Minority Report” já ganha o mundo real. Recentemente uma matéria do TechCrunch revelou que uma empresa americana chamada Immersive Labs levantou quase um milhão de dólares para pesquisar painéis de anúncios com reconhecimento facial que poderiam assim oferecer a cada transeunte informações personalizadas sobre os produtos em “display”. A diferença em relação a “Minority Report”, salvo engano, é que no filme de Spielberg os painéis leem a íris dos passantes, em vez da face.

É importante, entretanto, frisar que a atual realidade difere-se substancialmente daquele mundo imaginado por George Orwell em “1984”, livro escrito na década de 1940 e considerado uma das mais importantes representações literárias de uma sociedade distópica. Difere-se também do contexto sociopolítico que influenciou Orwell, isto é, o vertiginoso ganho de poder de Estados autoritários no Ocidente e a tentativa de invasão e dominação da Europa pela Alemanha de Hitler. Os procedimentos nazistas em direção ao controle dos corpos passavam, vale lembrar, pela eugenética e higiene racial e implicavam experimentos com humanos e o extermínio de grupos populacionais para se atingir uma raça pura e superior. Aqui, a invasão da liberdade e violação do corpo atingem um ponto alarmante e adentram o campo da manipulação genética (mesmo que sob a sombra da enquanto primitiva tecnocracia do Holocausto), uma fronteira que, embora estivesse no horizonte de preocupação de ficcionistas como Aldous Huxley com seu “Admirável mundo novo” (1932), ainda se coloca para nós, cidadãos do séc. XXI, como um mundo apenas tateado e perigoso de ser explorado.

Não por acaso, assim como “1984”, “Admirável mundo novo” foi escrito num contexto de difusão das ideologias totalitárias na Europa da década de 30. Imaginário futurista similar a esse, em que as massas estão constantemente sendo vigiadas por câmeras e agentes do Estado, persistiu até a década de 60, com filmes como “Alphaville”, de Jean-Luc Godard. Porém retornaria com nova roupagem, desta vez pelo imaginário cyborg de Philip K. Dick em “Do Androids Dream of Electric Sheep?” (1968) e, mais adiante, pelo espectro do controle cibernético do mundo decadent punk de William Gibson em “Neuromancer”, de 1983.

Aqui o controle ganha contornos mais estranhos às gerações modernas e se aproxima das pós-modernas ao alocar o perigo imediato, não apenas no homem, mas na eventual autonomia adquirida pelas máquinas inteligentes. Possuímos hoje, muito mais do que em meados do século XX, tecnologias que carregam grande potencial, mas será que a humanidade está pronta para levá-las às últimas consequências? A genética abre as portas para o poder extremo sobre o corpo, nos aproximando mais do que nunca da figura divina do deus cristão, porém impõe desafios imensuráveis. A última fronteira da medicina pode ser também a última fronteira para a exclusão e ampliação das diferenças entre os povos, as classes e as raças humanas na terra, e é, muito mais do que antes, uma realidade palpável.

Todavia, se cidades como Londres e até capitais brasileiras como Belo Horizonte se tornam paulatinamente mais monitoradas pelas câmeras e outros dispositivos, ou se a Google tem acesso ao comportamento de grandes populações e pode traçar, baseando-se em seu gigantesco banco de dados, tendências e gráficos sobre elas, isto se dá em um ambiente relativamente mais democrático e transparente do que aquele ficcional em que imperava a manipulação total da informação e da cultura pelo Big Brother orwelliano e sua ideologia IngSoc, embora, não sejamos ingênuos, levanta sérias questões sobre os jogos de poder e a violação da privacidade e seus fins.

Talvez a novidade, como apontou Bauman, esteja no fato de estarmos abrindo mão de nossa privacidade cada vez mais facilmente, sem termos plena consciência se o que recebemos em troca está, realmente, à altura do que oferecemos. No fim das contas, tendemos a nos parecer, na pior das hipóteses, mais com a subdemocracia de “Minority Report” do que com o hiperfascismo de “1984”.

O que, convenhamos, já é bastante desesperador. Mas, veja a ironia, a década de 1940 também tendia, para Orwell, a “1984”. Esta é uma lição que jamais se deve esquecer, pois antes de ser um alívio (não vivemos aquele mundo de “1984”), mostra que o futuro tende ao que nem sempre se espera, e todo cuidado com as tecnologias, sociais e materiais, como a história recente comprova, pode ser pouco.

Isso não significa que a saída se encontra numa inclinação à tecnofobia, como querem alguns radicais. Afinal, não faz sentido, por exemplo, negligenciar a Internet, que pode muito bem ser – apesar dos percalços (AI-5 Digital do Azeredo no Brasil, SOPA, FISA, ACTA e outros atos de maior ou menor sucesso para seu controle nos EUA e no resto do mundo) – a tecnologia mais potente já inventada para se construir a democracia e a liberdade, uma vez que permite que uma multidão disseminada, conectada e colaborativa devolva a pressão aos biopoderes imperiais.

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Texto originalmente publicado na Revista Select: http://www.select.art.br/article/reportagens_e_artigos/anonimidade

SALMAN RUSHDIE EXPERIMENTA COM O TWITTER

Salman Rushdie é escritor, ganhador do prêmio nobel de literatura, e agora companheiro de Twitter. Na verdade não sou um adepto do Twitter, mas pretendo voltar a acompanhar a timeline dos 140 caracteres para poder seguir Rushdie e sua mini novela, entre alguns outros autores.

Lembro-me de ter lido vários contos seus durante a minha graduação (especificamente “East, West”, de 1994), mas pra mim definitivamente o seu texto mais marcante foi “Os versos satânicos”, uma viagem fantástica no sub-mundo dos imigrantes indianos na Inglaterra, a transformação do protagonista em Bode e suas aventuras cinematográficas em Mumbai na índia, atravessada por uma completa ficcionalização de imagens sagradas do Islã, o que acabou lhe rendendo uma pena de morte por diversos países muçulmanos e o fatwā contra ele pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini, lider supremo do Irã, em 14 de fevereiro de 1989. O episódio levou o Reino Unido a romper relações diplomáticas com o Irã.

Como membro da diáspora indiana (ele nasceu em Mumbai, mas seus pais se mudaram para Londres quando ele era criança), Rushdie teve oportunidade de capturar com muita sensibilidade as sutilezas da vida dos imigrantes e reler seus valores frente aos novos costumes europeus que ao longo da infância foi adquirindo.

Mas sua timeline (“timeline” é a sequência de mensagens no Twitter) não traz somente sua narrativa ficcional. Rushdie conversa com seus seguidores e tece comentários memoráveis sobre literatura, política, cultura. Imagine você lançar uma perguntinha despretensiosa: “tenho que admitir; estou garrada no capítulo O Grande Inquisidor dos Irmãos Karamázov (clássico do Dostoiévski), alguém pode me explicar do que se trata em 140 caracteres?”, e ouvir, como aconteceu com uma de suas seguidoras, de volta uma resposta de Rushdie: “The Inquisitor condemns Christ for giving men too much freedom, admits that the Church follows the Devil. Does that help?”

São frequentes também comentários sobre teoria literária e literatura em geral. Trata-se, claro, de conversas rápidas e espontâneas. Segue um pequeno trecho que recortei de uma troca de ideias com alguns seguidores sobre o realismo na literatura fantástica:

SalmanRushdie: When people say “magic realism”,they usually mean just “magic.” But the “realism” part is just as important. (Ans. to question at #Oberlin.)

musuraki: @SalmanRushdie as a poor reader speaking, when it comes to you i rather delete ‘realism’ at all..:)

SalmanRushdie: @musuraki If you think there’s no realism in my work then I’m sorry to say that yes, you are a poor reader of it.

musuraki: @SalmanRushdie then, unfortunately for you, i’ve written almost all of your books’ reviews in my country, also the prefaces on your books:)

SalmanRushdie: @musuraki Then I invite you to think again about this work.

mithunk: @SalmanRushdie I’ll ask anyway. Is magic realism used as a convenient tool by writers to keep the humdrum or stark nature of reality at bay?

SalmanRushdie: @mithunk No.

mithunk: @SalmanRushdie I hope you didn’t take offence to my ‘convenient tool’ question, it was an earnest one, not a snarky troll question.

SalmanRushdie: @mithunk All valuable literary methods are ways of revealing, amplifying, intensifying reality, not escaping from it.

SalmanRushdie: @Holly9907 My earlier tweet, stressing the “realism” part of the term “magical realism,” was intended to rebut exactly this view.

Este é o estranho, efêmero e fragmentado mundo do Twitter se mesclando com o estável e tradicional mundo da literatura. De certa forma desconstrói um longo processo histórico de mistificação dos grandes autores. Os mais irônicos dirão: “que nada, bobagem, aposto que não é ele que escreve”… Os ainda mais sarcásticos o acusarão de jogada de marketing ou tentativa de alavancar as vendas do seu último romance. No fim das contas, o meu lado romântico quer acreditar que ele está lá por curiosidade, vontade de se aproximar dos leitores e fazer parte da própria dinâmica de um mundo em que as formas de encontro e afeto ganharam outros contornos.

INDÚSTRIA, SOPA E A BATALHA MUNDIAL PELO CONTROLE DA CULTURA

Há uma guerra em curso entre a cultura popular, híbrida e flexível das redes e os grandes conglomerados da produção de bens simbólicos. Setores do governo americano estão pressionando os ministérios da cultura em todo o mundo (como ficou comprovado com vazamentos recentes de comunicações diplomáticas na Espanha) para aprovar leis nacionais que reflitam os desejos e as diretrizes da grande indústria cultural. No entanto, estes setores precisam também levar a cabo reformas em sua própria casa, por isso tramita no congresso americano um projeto de lei chamado SOPA.

Se este projeto for aprovado (e não for vetado pelo governo Obama, que vem tecendo críticas abertas a seu enfoque) a internet como conhecemos pode mudar radicalmente a favor de corporações como Disney, Warner, Sony, etc. Boa parte do conteúdo que circula, por exemplo, nos blogs, em fóruns, nas redes sociais, no You Tube, etc. pode desaparecer e a cibercultura pode se tornar sinônimo de um agrupamento de grandes e industrializados canais, como aqueles da televisão. O compartilhamento de fragmentos de informações de jornais, revistas, poemas, músicas, vídeos seria criminalizado. Medidas draconianas seriam implementadas a fim de punir os serviços ou usuários que desobedecerem as antiquadas leis do direito de propriedade, que, da forma como são hoje dispostas, promovem o monopólio global da produção de linguagens, e não a cultura, o público ou os autores.

No Brasil, o ex-senador e atual deputado federal Eduardo Azeredo e o seu chamado AI-5 Digital (projeto de lei proposto no congresso) foram derrotados por pressão popular numa primeira etapa, mas o embate prossegue (leia a matéria da Carta Capital para entender em que ponto se encontra esta briga). Da mesma forma, a ministra da cultura do governo Dilma Rousseff vem se revelando cada vez mais como um fantoche nas mãos do grande capital e, numa flagrante incapacidade de discernimento, defendendo uma lógica falida de institucionalização da produção de bens simbólicos em suposta defesa da cultura.

Hoje alguns países como a Suíça têm se posicionado contra qualquer tipo de cerceamento da troca e remix de conteúdos nas redes, se apoiando em recentes estudos que mostram que estas práticas podem beneficiar uma renovada cultura e revitalizar o próprio mercado.

Nesta quarta-feira grandes sites (como a Wikipédia) irão parar em um protesto contra o SOPA, que está perigosamente perto de ser aprovado. Veja entrevista de Sérgio Amadeu esclarecendo melhor o assunto. Saiba mais também nesta matéria de O Globo.

WWW – UM NOVO MAPEAMENTO DE PODERES

Chris Hughes, 24, uma das integrantes mais novas da Triple O (equipe responsável pelas relações online na campanha de Barack Obama), disse ao Washington Post que a campanha foi uma lição. “Aprendemos que a internet tem um imenso potencial para mostrar a pessoas que nunca haviam se envolvido com política que este é um assunto que pode impactar nas suas vidas. A premissa fundamental era permitir que o processo político ficasse nas mãos das pessoas. Esse era o valor do início da campanha, e foi o valor do final da campanha e ele não vai desaparecer”.

A notícia acima foi tirada do site da Folha de São Paulo. Na mesma matéria outros dados interessantes sobre a campanha online de Obama:

> 3 milhões de internautas fizeram 6,5 milhões de doações pela Web no valor médio de US$ 80, somando US$ 500 milhões. O total da arrecadação da campanha de Obama soma US$ 600 milhões;

> 13 milhões de internautas deixaram seus e-mails cadastrados no site do candidato; Por e-mail, a assessoria de imprensa de Obama enviou aos internautas mais de 1 bilhão de mensagens durante a campanha; Com ajuda da Internet, 200 mil eventos foram organizados, 400 mil textos foram postados em blogs e 35 mil grupos voluntários foram criados;

> Além de sua página de campanha, Obama criou 15 comunidades em outros sites, incluindo o BlackPlanet, MySpace e Facebook. Neste último, 3,2 milhões de pessoas aderiram à comunidade, um grupo chamado Estudantes por Barack Obama, criado em julho de 2007.

O cenário exposto, embora parcial, oferece indícios da importância da comunicação em rede para pequenas e grandes decisões e definições na briga por poder no mundo atual. Durante sua campanha, Obama obteve uma média de 92 milhões de aparições na Internet por mês, contra 7 milhões do senador John McCain. Analistas apontam a recente eleição para presidente americana como a eleição dos jovens e a eleição da Internet.

Não nos surpreende perceber que jovens e Internet andaram juntos. Já em 2004 uma pesquisa da Online Publishers Association trazia os seguintes dados: para 50,5% daqueles com idade entre 18-24 anos, a Internet seria a primeira escolha no universo das mídias. Na faixa de idade entre 25-34, seria a primeira escolha para 43,6%, e entre 35-54, para 42,8%. A mídia preferida como segunda escolha seria a TV para todas as faixas etárias, e à medida que a idade crescia, a TV também crescia, tomando lugar da Internet com primeira escolha.

Será que haveria uma volta tão intensa dos jovens à política tradicional nos EUA caso a Internet não existisse? Talvez nem mesmo na atual situação de crise política e econômica e com todo o carisma de Obama. A grande novidade que a Web e sua multidão de pequenos agentes oferecem é um certo contrabalanço à festa da manipulação levada a cabo por setores da mídia centralizada; um pouco de caos pode trazer muito mais luz do que se imagina.

A esperança é de que daqui para frente essas pequenas multidões desenvolvam métodos de inteligência coletiva e participativa cada vez mais eficientes para fazer frente ao controle de velhas oligarquias políticas e midiáticas. Fatos interessantes no programa político de Obama, que vem sendo escrito após sua eleição, valem a pena serem ressaltados nesse contexto. Contrariando tendências ideológicas do governo republicano, um de seus pontos, na área de comunicação e tecnologia, diz (tradução minha): “Uma das razões mais importantes para o sucesso da Internet é o fato de ela ser a rede mais aberta na história. E precisa continuar sendo. Barack Obama apóia veementemente o princípio da neutralidade da rede para preservar a competição aberta na Internet”. Tal declaração vai de encontro a projetos corporativos nos EUA, que recentemente vêm mostrando interesse em criar infraestruturas diferenciadas de acesso à Internet, oferecendo redes gratuitas e lentas para alguns, e construindo redes de acesso rápido e pago para outros. A segunda teria maior participação e controle de grandes grupos políticos e empresariais. Paulatinamente vêm surgindo movimentos inversos em vários setores não corporativos sob a bandeira do movimento chamado “net neutrality” (neutralidade da rede).

Em outra passagem, em direto ataque às tendências mostradas pelo governo Bush, seu programa diz: “As plataformas abertas de informação do século 21 podem tentar instituições a violar a privacidade dos cidadãos. Como presidente, Barack Obama vai fortalecer as proteções à privacidade na era digital e vai incrementar o poder da tecnologia a fim de responsabilizar o governo e empresas por violações da privacidade pessoal.” E mais uma: “Obama valoriza as liberdades da primeira emenda e o nosso direito à expressão artística e não vê regulamentações como resposta possível a essas questões”. E ainda: “Barack Obama acredita que precisamos reformar nosso sistema de direitos autorais e patentes para promover o discurso cívico, inovação e investimento…”.

São posições políticas relevantes em um tempo em que a rede mundial de computadores começa a balançar diversos sistemas de proteção e elitização do conteúdo intelectual, do controle da expressão e da liberdade individual. Tal engajamento é necessário a fim de manter as opções de ação adquiridas nesses campos com o advento da tecnologia digital e da WWW. Fica uma sugestão: dê uma procura na Internet por “neutralidade da rede” ou “net neutrality” para se colocar a par das dificuldades que hoje vêm sendo enfrentadas para manter a Internet aberta, livre e como opção de construção de linguagens e ações alternativas. Ou acompanhe o blog do Sérgio Amadeu, pensador brasileiro que participa ativamente do processo de construção da nova legislação brasileira sobre a internet.

Alemar. S. A. Rena

 

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ]

NATURALMENTE TECNOLÓGICOS

Quando se fala na relação homem-técnica, com freqüência penso naquela cena de abertura do filme “2001: uma odisséia no espaço”, em que pré-humanos de uma pequena tribo, até então mais parecidos com macacos do que com o humano, descobrem a sua primeira ferramenta: um pedaço de osso que, após ser experimentado pelo líder do grupo, batendo-o contra um monte de ossos no chão, despedaçando-os, passa a ser usado por ele como arma para vencer as brigas por territórios em torno de lagos.

Outro filme me leva a pensar em uma situação parecida: dirigido por Jean-Jacques Annaud, o excelente “A guerra do fogo” trata da descoberta do fogo pelo homem há 80.000 anos, um tempo histórico mais recente do que o de “2001…”; no documentário (uma recriação minuciosa do período histórico), as tribos, embora não dominassem completamente a criação do fogo, aprendem a mantê-lo aceso e passam a usá-lo mais ou menos com o mesmo intuito dos pré-humanos em “2001…”: preservação de vantagens adquiridas em relação a outros grupos ou tribos.

O aprendizado de uma técnica é, nesses exemplos, uma forma de sobrevivência e preservação de poderes e da vida. O que não difere muito daquilo que a tecnologia por si só significaria para nós. Aliás, esta clássica passagem de “2001…”, dirigido por Stanley Kubrick e baseado no livro homônimo do recentemente falecido autor Arthur E. Clark, é concluída com o macaco pré-humano, tendo vencido orgulhosamente sua primeira batalha com o uso de um pedaço do que parece ser um fêmur, lançando o osso no ar, para cima, que, girando em torno do seu próprio eixo é sucedido pela imagem, muitos milhares de anos depois (já em 2001), de uma espaço-nave que leva seus tripulantes a uma importante descoberta.

O que essa cena quer nos dizer, creio, é que a descoberta da ferramenta pelos pré-homens marca a “fundação” do humano.

Na verdade, precedendo a cena da batalha vencida com a nova arma, uma outra passagem havia mostrado os pré-humanos acordando ao alvorecer e se deparando com um monólito. Maravilhados e espantados com a anti-naturalidade do objeto geométrico, matemático, um bloco retangular de pedra perfeito, cor de grafite, mais ou menos três vezes maior do que a estatura humana, que aparece cravado no solo próximo ao local da batalha, os pré-humanos pulam e balbuciam, como que em reconhecimento de sua nova condição.

O monólito é simbólico e fundamental na narrativa, pois sugere que a descoberta da ferramenta está associada ao misterioso aparecimento do mesmo, que representaria uma racionalidade exterior à terra, uma inteligência desconhecida que de alguma forma interfere na existência do então pré-humano. Quem conhece o filme sabe que esta é apenas uma interpretação possível, dada a abertura de significados que ele produz no decorrer de toda a narrativa.

O que interessa mais, no entanto, é a sugestão de que a espécie humana, a inteligência e a tecnologia são conceitos indissociáveis. O ser humano não existiria sem a capacidade de transformar o mundo em tecnologias. Mas é fato que a tecnologia tem que ser pensada como mais do que uma extensão da nossa condição de seres dotados de inteligência e consciência. Porque enquanto sociedade, a tecnologia depende da — ao mesmo tempo que conforma a — cultura, esse extrato um tanto que abstrato de valores simbólicos, éticos, políticos etc. que permeia nosso cotidiano, nossa experiência de vida. Nesse sentido, a tecnologia deveria ser pensada — numa constante prática metalinguística — a fim de podermos “manipulá-la” para que a sociedade e a cultura caminhem em direções que nos interessam. Mas é claro que essa tarefa é extremamente complicada, dado que as direções que nos interessam enquanto sociedade são dificilmente um consenso.

Hoje, em um mundo de alta competitividade e constante criação de demandas técnicas, não se pode dizer que o desenvolvimento tecnológico se limite à sobrevivência e preservação da vida, como se pode ver em ambos os filmes. Há, no atual contexto capitalista, uma constante busca de um desenvolvimento tecnológico que transcende necessidades básicas, alcançando, como é bem sabido, um paradigma da técnica como forma de conquista de mercados, de capital, de controle e de sobreposição de poderes, assim como de libertação individual e coletiva.

Para assistir a esta passagem de “2001…”, vá aqui (parte 1) e depois aqui (parte 2)

Alemar S. A. Rena

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ]

LIBERDADE DE EXPRESSÃO PARA QUEM?

Peixes grandes comem peixes pequenos – Ilustração de Peter Brueghel, o Velho –  1556-1557

 

Coisas estranhas cercam o universo da notícia e do direito à informação e à liberdade de expressão no Brasil hoje.

Sou professor de um curso de Comunicação Social em Belo Horizonte, nas áreas de Jornalismo e Publicidade, mas não sou jornalista e nem nunca o quis ser, sou formado em Letras com mestrado em Teoria da Literatura, com alguma ênfase em processos de comunicação; me interessam as questões de comunicação, porque me interessam as questões de poder no mundo. Embora algumas propostas didáticas, teóricas e metodológicas nestes cursos superiores são por vezes falhas e acabam por formar pessoas incapazes de agir e pensar satisfatoriamente sobre uma dada realidade social, econômica e política complexa, reconheço o imenso valor que um curso superior pode ter na qualidade da prática profissional, seja ela jornalística ou não, e acredito que algumas profissões não prescindem do diploma superior. Sou defensor do desenvolvimento intelectual em qualquer nível; acredito que apenas ele faz grande diferença no mundo quando se trata de desenvolvimento humano.

Minha formação na área de línguas, artes e literatura deixou mais claro algo que às vezes passa despercebido: comunicar é, antes de mais nada, uma ação que envolve poder, é uma ação política, para o bem ou para o mal. Mais ainda, é uma ação política complexa que envolve valores discursivos de ordem cultural e econômica. Por isso o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz o seguinte:

“Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.”

Ainda, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 11, já dispunha de forma semelhante: “A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei”.

Por fim, a Magna Carta vigente desde a primeira constituição brasileira diz em seu artigo 5: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”; e em seu artigo 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”.

Por essa razão também a exigência do diploma para se exercer a profissão de comunicar notícias e outros formatos de informação vem sendo veementemente questionada por diversos pensadores no Brasil e pelo Supremo Tribunal Federal. O site O Jornalista publicou uma pesquisa de enorme utilidade pública para entendermos a nossa situação em completa dissonância com o mundo democrático desenvolvido nesta área (http://www.ojornalista.com.br/pesquisa.asp). Segundo o site, os EUA contam com 400 faculdades e universidades que oferecem o curso de Jornalismo; 120 oferecem pós-graduação na área e 35 oferecem doutorado. Lá, a maioria dos profissionais contratados cursaram uma faculdade de Jornalismo. Mas o que torna isso uma realidade é o próprio mercado e a sociedade; nos Estados Unidos da América não há a exigência do diploma em lei. Aqueles que acharem necessário, por quaisquer razões, falar, noticiar, reclamar, opinar, divulgar, em qualquer nível ou meio, qualquer informação (desde que atenda a preceitos éticos básicos que valem para todos os cidadãos), podem fazê-lo livremente, inclusive em um jornal diário de grande circulação.

Na Alemanha, Áustria, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Itália, Países Baixos, Portugal, Polônia, Suécia, Suíça, Japão, Marrocos, China, Austrália, Argentina, Chile, Guatemala, Peru, entre vários outros países, situação semelhante é constatada, isto é, não há necessidade de formação superior para ser jornalista ou informar em meios de comunicação de qualquer natureza. Na Europa, apenas 4 países entre os 16 pesquisados exigem o diploma: Turquia, Ucrânia, Croácia e Bélgica. O caso mais interessante na pesquisa é o da Croácia, onde “para o exercício profissional do jornalismo no país é preciso completar a Faculdade de Ciências Políticas, no Departamento de Jornalismo e línguas estrangeiras na Faculdade de Filosofia”.

A grande maioria dos países pesquisados que exigem o diploma para exercer a profissão se encontram na África (Congo, Costa do Marfim, África do Sul, Cabo Verde, Tunísia), Oriente Médio (Arábia, Síria), e América Latina (Brasil, Colômbia, Honduras e Equador) sendo que muitos destes países vivem em sistemas políticos cuja organização, por razão ou outra, geram graves exclusões, por vezes em desacordo com os direitos humanos em outras áreas para além da liberdade de expressão.

Em carta enviada ao Supremo Tribunal Federal, o FNPJ (Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo, www.fnpj.org.br), na tentativa de convencer os ministros a votarem a favor da exigência de formação superior, expõe alguns problemas do raciocínio falacioso do qual se valem aqueles que defendem o diploma para atuar na área; a seguir, comento alguns trechos:

“o jornalista não é um opinador público ou o portador de um uma espécie de registro que supostamente lhe daria o mandato, exclusivo, para opinar. Ao contrário, por dever ético e eficácia técnica, o jornalista não manifesta seu pensamento no exercício profissional.”

Creio que esse argumento contém dois erros; primeiro, quando diz que, ao fazer jornalismo, nenhum julgamento pessoal está em jogo. Isso vai contra as fortes tendências nas ciências sociais como um todo de se desconstruir o mito da imparcialidade na elaboração do discurso, seja lá qual for sua natureza. Todo discurso, em maior ou menor grau, se posiciona, a começar pela simples escolha do tema que aborda. Portanto, um jornal ou um jornalista não precisam emitir opiniões expressas para se posicionarem. Os conteúdos escolhidos para seus cadernos são, talvez, a mais eficiente forma de colocação e intervenção ideológica nos meios de massa. É claro que alguns apontarão os critérios de noticiabilidade como garantia de isenção, mas esses também são uma ficção; a sociedade é induzida a dar importância àquilo que a mídia mostra com mais freqüência, portanto a própria noticiabilidade é uma construção que sofre fortes influências dos meios de comunicação de massa. Se referindo à cultura, Adorno e Horkheimer chamariam esse processo de “círculo de manipulação e necessidade retroativa”, em seu célebre texto “A indústria cultural”.

Não há isenção, por isso a construção destes valores na sociedade tem que se dar de forma ampla, diversificada e absolutamente livre, buscando fazer um contraponto com setores corporativos que detêm grande poder de influência. Ainda, a crença de que o jornalista não deve manifestar seu pensamento no exercício profissional, como o texto da carta sugere, é, a meu ver, um equívoco da concepção de sua função social. O que acontece é que os meios de comunicação sem dúvida expressam pensamentos e valores; isto não seria tão grave se estes valores e pensamentos não fossem expressados justamente de forma velada, se escondendo atrás da tão aclamada “objetividade” ou “imparcialidade” da notícia. E mais: seria ridículo limitar a prática jornalística a textos de caráter noticioso. Basta abrirmos um jornal para vermos que ele é feito de estratos extremamente diversificados, linguagens diversas que englobam amplo campo de habilidades específicas, muitas das quais jornalistas com diploma jamais chegam a estudar e/ou dominar.

Em segundo lugar, a carta coloca:

“Ao contrário, é dever do jornalista assegurar a todos o máximo de acesso aos espaços de opinião da sociedade representados pela mídia.”

Ora, está mais do que óbvio que isso não acontece na realidade por razões semelhantes às citadas acima, nos casos menos óbvios, e, em casos mais graves, porque o preenchimento do espaço segue critérios de ordem econômica, publicitária, política. Ainda, a carta continua:

“O jornalismo moderno, porém, é o jornalismo informativo, e seu produto por excelência é a notícia, mais complexa ética e tecnicamente de ser trabalhada.”

Esta crença exagerada na técnica é mais um entrave ao desempenho pleno do papel do jornalista. A técnica pode ser importante, mas a sua exacerbação pura, desprovida de julgamento, criatividade e autonomia é nociva para a construção de uma inteligência social, e, no fim das contas, quando praticada com a intensidade que vemos hoje, acaba por gerar um emburrecimento generalizado. Podemos perguntar ainda qual técnica é considerada certa ou errada, segundo quais interesses. Como já disse, os processos de comunicação social são complexos e devem atender a interesses e circunstâncias extremamente diversificados, não cabendo um fechamento a priori por técnicas e métodos (desde, é claro, que não se infrinja condutas que dizem respeito, antes, à convivência social na sociedade de direito, e não à técnica de produção da notícia especificamente).

O que deixa essa defesa à oficialização do direito de expressão nos meios de comunicação mais sinistra do que já era é o forte crescimento da importância das formas de comunicação em rede no cenário atual; a Internet, ambiente de comunicação edificado com legítima e ampla participação do corpo social, não permite, dada sua natureza técnica, a aplicação de tais restrições aos processos comunicativos. Desta forma, me pergunto: perante estas limitações legais, é permitido dar notícias, sejam lá quais forem, em um blog público (portanto numa publicação digital), sem que se detenha o diploma de jornalista? Posso ter um portal de notícias sobre uma área que me interessa, digamos, a produção científica no campo da literatura, sem que tenha formação superior em Jornalismo? Estas dúvidas, quando são colocadas no contexto da Internet, parecem descabidas, mas são, do ponto de vista de tal legislação restritiva, absolutamente pertinentes.

Creio que, se alguém quer ser jornalista, fazer carreira na profissão, a opção de poder obter um diploma de curso superior na área é interessantíssima. E o mesmo vale para a maioria das profissões. Mas isso não deve tirar o direito das pessoas sem formação superior ou em Jornalismo de noticiar e expressar, em ambientes diversos (jornais comunitários, blogs na Internet, entrevistas específicas em jornais, reportagens, etc.). Como diz o pensador francês Pierre Lévy, “não se pode ter ao mesmo tempo a liberdade de informação e a seleção a priori das informações por uma instância que supostamente sabe o que é bom e verdadeiro para todos, seja essa instância jornalística, científica, política ou religiosa.”

Alemar S. A. Rena

 

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ. Apresentado aqui com pequenas modificações]

KRAFTWERK E O FIO DA MEADA… 20 ANOS DEPOIS

 

Vale a pena notar como a tecnologia às vezes assume um papel fundamental nos caminhos das artes. Falando de música mais especificamente, a década de 80 mostrou uma produção especialmente estranha quando observamos o uso da linguagem eletrônica. Embora bandas como o Kraftwerk (alemães) e o New Order (ingleses) já tivessem mostrado caminhos interessantes e especiais para a composição e gravação com o uso de aparatos eletrônicos em 70 e início de 80, e mesmo antes, já em 50, artistas de vanguarda como Karlheinz Stockhausen (alemão) já vinham propondo novas possobilidades de criação com a música eletroacústica, pode-se dizer que a maior parte da música de 80 fez um aproveito pouco inventivo dessas, então, recentes tecnologias. Falo especificamente da música Pop, que muitas vezes pensava os samples e o uso de sintetizadores como possibilidade de réplica (simulacro) do acústico, trazendo à vida sonoridades muito pobres, beirando à música brega mesmo. Embora o eletrônico já estive presente, não era uma questão da linguagem e do conceito, como era para o Kraftwerk. É claro que essa realidade do eletrônico nos anos 80 era uma realidade da música, da moda e do comportamento mais ou menos como um todo, que passavam por uma fase esquisita, que a gente aqui em BH teve oportunidade relembrar nas festas temáticas dos anos 80, produzidas no início dos anos 00 n´A Obra Bar Dançante e depois pulverizadas por toda a noite de Belo Horizonte.

A mudança somente se deu com o aparecimento da chamada geração Grunge na década de 90, que buscava direções radicalmente diferentes, resgatando as tendências do Punk de fins da década de 70, mas que nada tinha de eletrônico. No Brasil vieram Chico Science e Nação Zumbi e o movimento Manguebeat, entre outros, que já incorporavam tendências do eletrônico-digital (“computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro…”, dizia Chico Science). Mas o eletrônico, o digital, ainda não havia se firmado de fato como possibilidade de produção de alto nível e ampla; se assim fosse, teria certamente começado com o Kraftwerk e outros que teriam influenciado toda uma geração de bandas eletrônicas logo ali, nos anos 80. O fio da meada, abandonado em fins de 70, somente pôde ser resgatado de forma ampla – porque no universo underground o eletrônico sempre existiu desde 70 – de noventa e poucos para frente, vinte anos depois. É possível dizer que o Kraftwerk e afins foram visionários de dimensão tal que passaram 20 anos para que se realmente entendesse, aceitasse e retomasse em grande escala a proposta (conceitual e estética)  do eletrônico sofisticado que faziam antes da avalanche Pop oitentista. Não é uma questão, para o eletrônico pós 90, de olhar para trás e se deixar influenciar pelo Kraftwerk; trata-se de uma retomada em grande escala de um projeto de música que, por razões diversas, não havia ganhado espaço. Não se trata de releitura; trata-se de continuação de um projeto, exageradamente a frente do seu tempo, estranhamente abortado.

Na música, o eletrônico digital foi sem dúvida uma das mais interessantes rupturas desde o Rock em 50 e 60 (que em si devem muito à tecnologia pelo aparecimento da guitarra elétrica). De meados de 90 para frente, a nova linguagem do computador, dos editores, dos samples, dos sintetizadores esteve ou está presente em quase tudo de mais interessante, trazendo revigorados ares. Claro que tudo isso tem muito a ver com a popularização do computador pessoal, que permite compor sem precisar do estúdio profissional, recurso ainda hoje muito caro para o artista iniciante ou independente por escolha. E quanto à linguagem, dada a riqueza de possibilidades de composições estéticas que softwares como Live, Reason, e a suite da Native Instruments oferecem, ela está mais diversificada do que nunca; há Rock, Disco, contaminação dos sessenta, da MPB, do Folk, do Dub, da música Eletroacústica, etc. E há também, é claro, a volta dos 80, com o Electro e outros “estilos”, mas não sem as devidas doses de ironia e desconstrução, típicas da música atual.

Em Belo Horizonte, algumas produções se destacam, mas vamos direto ao assunto: na Internet, visite:

Esquadrão Atari: www.myspace.com/esquadraoatari

Roger Moore: www.myspace.com/rogermoorelive

Retrigger: www.retrigger.net/

Digitaria: www.myspace.com/digitariamusic

Anderson Noise: www2.uol.com.br/noise/

Há também DJ’s importantes, como o Blip, Kowalsky, Leo Mille, Robinho, Daniel Maia, LP e outros, que contribuíram para que a música eletrônica na cidade definitivamente ganhasse o grande público. Para mais informações sobre a história da música eletrônica em BH vá a:

www.drumbass.com.br/forum/index.php?showtopic=2112&mode=linear

Alemar S. A. Rena

 

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ, republicado aqui com algumas alterações]

ENTREVISTA COM FERNANDO AMERICANO

Chrysler Peapod —

Poucos sabem, mas houve um momento na história da indústria automobilística em que a eletricidade era uma real candidata a se tornar a fonte de energia padrão nos veículos. Não estou falando do período atual ou recente, mas de 120 anos atrás. Embora veículos com motores elétricos tenham sido produzidos em escala então, o uso da gasolina produzida a partir do petróleo se mostrou mais eficiente por uma série de razões, mas principalmente pelo custo mais baixo de produção do motor de combustão interna e pelo fato de dispensar constante recarga de baterias, podendo ser usada em deslocamento de maiores distâncias. Mas o motor a eletricidade tinha suas interessantes vantagens: não vibrava, não produzia barulho, era fácil de dar partida (o carro a gasolina usava uma manivela) e não cheirava mal. Estas vantagens sem mantêm até os dias atuais.

Hoje, estamos às voltas com novas pesquisas na área de energia e possibilidades de escolhas similares, mas movidos por razões bastante diferentes. Tem ficado cada vez mais evidente que, dada a atual velocidade de crescimento da população mundial e do consumo per capta, o planeta que nos abriga não suportará por muito tempo se não repensarmos nossas tecnologias, hábitos de consumo e sistemas de produção. Ou melhor, o planeta vai suportar e provavelmente vai se recuperar em pouco tempo caso sejamos extintos por nossa própria incompetência, esgotando as fontes que nos mantêm vivos e em condições de usufruir de nosso modelo de mundo desenvolvido: água potável, solo para produção de alimentos, oxigênio, atmosfera em equilíbrio e energia. Em suma, nosso modelo civilizatório, desenvolvimentista e tecnológico está caduco e sua reforma se mostra como o maior desafio a curto, médio e longo prazos.

Mesmo com todo o avanço tecnológico alcançado, ainda não fomos capazes viabilizar comercialmente, por exemplo, carros movidos a motores elétricos sem que façamos uso de outra energia mais poluente, como o biodiesel ou o petróleo, concomitantemente. O álcool brasileiro se mostra como uma solução interessante para o Brasil a curto prazo, mas insuficiente para se enfrentar o problema das pesadas emissões de CO2 e do efeito estufa, que ajuda a elevar a temperatura atmosférica no planeta, oferecendo fortes indícios de que podemos ter que lidar com condições extremas de mudanças no ecossistema, acarretando em prejuízos naturais e materiais incalculáveis e talvez irreparáveis.

Dada a importância destas questões no nível da tecnologia e da cultura, converso, por e-mail, com Fernando Americano, mestrando em estratégias de comunicação para mídias informatizadas pela Sorbonne, em Paris, onde vive e trabalha como relações públicas de uma importante montadora de automóveis. Fernando nos fala sobre o lugar do álcool brasileiro, do momento atual da indústria automobilística na Europa e como isso tem a ver com tecnologia e, porque não, cultura. (Entrevista feita em 2009)

 

Alemar Rena: Quais são as perspectivas do biodiesel brasileiro hoje enquanto alternativa ao petróleo no mundo? Porque o álcool brasileiro não chegou de fato à Europa?

Fernando Americano: As perspectivas do álcool, biodiesel ou de qualquer outro bio-combustível enquanto alternativa ao petróleo na Europa são próximas de zero. Há muito busca-se uma alternativa ao petróleo, por duas razões principalmente: diminuir a dependência em relação aos países produtores de petróleo e reduzir o nível de emissões na atmosfera. Os biocombustíveis não atendem à segunda demanda. Embora poluam menos que os derivados do petróleo, são ainda bastante poluentes e a meta dos governos Europeus hoje é emissão zero. Apesar disso, não podemos afirmar que tenha sido essa a razão pela qual o álcool brasileiro não tenha chegado à Europa. Esta é uma escolha que não depende só dos fabricantes de automóveis ou do público consumidor. Sem ajuda dos governos para se criar infra-estrutura e conceder benefícios, nenhum combustível irá emplacar.

Naturalmente esta não é apenas uma escolha técnica, é também política. Dentro deste raciocínio qualquer tecnologia teria potencial para substituir o petróleo, desde que fosse adotada, ou melhor, apadrinhada, pelos governos europeus. Acredito que o álcool e o biodiesel teriam sido ótimas alternativas há 10 ou 15 anos. Acredito também que se o governo Brasileiro tivesse tentado promover estes combustíveis naquela época poderia ter tido algum sucesso. Hoje em dia as exigências em termos de emissão são outras e as tecnologias concorrentes evoluíram muito. Além disso, as escolhas já foram feitas. Uma mudança estrutural dessa grandeza não é promovida da noite para o dia, as decisões já foram tomadas há alguns anos para que sintamos os reflexos já num futuro bastante próximo. A maioria dos investimentos em infra-estrutura e dos incentivos fiscais concedidos pelos governos europeus estão sendo feitos no sentido de viabilizar a eletricidade como o substituto do petróleo. Se o governo brasileiro tinha a intenção de promover o biodiesel enquanto alternativa na Europa, chegou tarde.

Alemar Rena: Não há futuro para o biodiesel e para o álcool na Europa?

FA: Não é bem assim. Acredito que no futuro utilizaremos uma maior diversidade de combustíveis. Qualquer iniciativa que diminua a dependência do petróleo já ajuda. Etanol e biodiesel já são utilizados em alguma escala na Europa e alguns países já adicionam etanol à gasolina a exemplo do que ocorre no Brasil. Acredito até que veículos flex possam ser introduzidos no mercado europeu com algum sucesso, mas penso que estas são todas iniciativas pontuais, limitadas a uma pequena porcentagem da frota apenas. Não acredito que estes combustíveis tenham potencial para serem a grande matriz energética das próximas décadas, emissões de CO2 e mobilidade serão dois conceitos cada vez mais distantes um do outro.

Alemar Rena: E porque você acredita que os veículos elétricos serão os escolhidos como alternativa?

FA: Existe uma preocupação muito grande na Europa hoje quanto às emissões de gases causadores do efeito estufa. A União Europeia, grande defensora do protocolo de Quioto, estabeleceu rígidas metas para redução dos níveis de emissões. Hoje, para se licenciar um carro na maior parte dos países da Europa paga-se uma taxa de acordo com o nível de emissões de cada automóvel. Existe ainda uma proposta em trâmite na Comissão Europeia para unificar os impostos sobre veículos automotores e esta unificação tarifária seria feita justamente com base nos níveis de emissões. Neste contexto faz muito mais sentido optar por uma energia não poluente.

Além disso tem a questão da estrutura. Optar por um combustível como o álcool ou o biodiesel significaria profundas mudanças estruturais, incluindo a criação de novas refinarias, novas áreas para plantio, etc. Os biocombustíveis enfrentam certa resistência por parte da comunidade científica e de algumas ONG’s que demonstram preocupação com a possível transferência de áreas antes destinadas ao plantio de alimentos. Já com a eletricidade a estrutura está pronta. Parte do que é produzido pela rede elétrica acaba sendo jogado fora nos momentos de baixa demanda. É lógico pensar que a maior parte dos proprietários de veículos elétricos iria carregar seus carros durante a noite, justamente fora dos períodos de pico. Em outras palavras, uma frota de veículos elétricos pode achatar a curva da demanda tornando o uso da rede elétrica mais eficiente.

Alemar Rena: Mas o processo de produção de eletricidade pode ser também poluente. Até que ponto os carros movidos a eletricidade são realmente mais limpos?

FA: Claro, quando falamos em eletricidade ela pode vir de várias fontes. Desde fontes realmente limpas como a solar ou a eólica até fontes extremamente poluentes como as usinas termoelétricas, que respondem por mais de 40% da eletricidade gerada no mundo. Um recente estudo feito pela universidade de Stanford criou um ranking das fontes de energia mais agressivas à natureza. Este estudo tenta estimar qual seria o impacto causado por diversas fontes de energia se cada uma dessas fontes fosse utilizada como a única força motriz dos automóveis em circulação nos Estados Unidos. O estudo concluiu que a combinação veículos movidos a eletricidade + eletricidade eólica é a menos agressiva ao ambiente. A combinação veículo elétrico + usinas termoelétricas ficou em quarto no ranking. As duas últimas posições entre as 12 combinações estudadas foram ocupadas pelos veículos movidos a etanol produzido a partir do milho e da celulose respectivamente. O etanol produzido a partir da cana de açúcar não foi incluído no estudo mas podemos concluir que, mesmo considerando sua maior eficiência, o impacto de sua utilização em larga escala seja semelhante aos dos etanóis feitos a partir do milho e da celulose.

Alemar Rena: Como vem sendo as reações do europeu comum em relação ao aumento da temperatura global? Quais mudanças são observadas nas grandes cidades européias no cotidiano das pessoas?

FA: Acho que o europeu tem um senso de coletividade mais desenvolvido que o nosso. Eles têm mais consciência que suas ações, por menores que sejam, repercutem em toda a sociedade. Pequenos gestos que ainda estão longe de se tornar hábito no Brasil estão presentes no cotidiano de qualquer europeu, como por exemplo não utilizar sacos plásticos nos supermercados ou reciclar o lixo. O mercado de automóveis reflete essa tendência. As vendas de SUV’s e 4×4 vem despencando vertiginosamente, enquanto carros pequenos como o Smart, Mini e Fiat 500 fazem um enorme sucesso. Naturalmente o preço do petróleo e as sobretaxas a que estão sujeitos os carros maiores também influenciam, mas, enquanto no Brasil muitos sonham em ter uma Cayenne, aqui na Europa é o Mini Clubman que faz girar os pescoços.

Alemar Rena: E nas grandes empresas ou instituições?

FA: É natural, em um ambiente onde haja uma consciência ecológica maior, que as empresas se preocupem em tomar atitudes ecologicamente corretas. O objetivo final de toda empresa é e será sempre o lucro, mas há muito tempo elas perceberam que o ecologicamente correto pode ser também lucrativo.

Alemar Rena: Carros movidos a eletricidade são comuns hoje nas ruas de Paris e outras grandes cidades? Qual é a projeção e plano a curto e médio prazo para uso de carros elétricos na Europa nos próximos anos? E para o Brasil?

FA: Veículos movidos a eletricidade não chegam a ser comuns na Europa, mas estão longe de ser raros. Existe uma oferta razoável de micro carros elétricos e pontos de recarga já podem ser vistos nas grandes cidades. Além disso há os veículos híbridos, que combinam a eletricidade à combustão interna. Os híbridos já são relativamente comuns nas grandes cidades européias. Ao se tomar um taxi em Paris, você tem grandes chances de montar em um Toyota Prius (que já está indo para sua terceira geração) ou em um Honda Civic híbrido.

Voltando aos veículos puramente elétricos, praticamente todos os grandes fabricantes de automóveis planejam lançar pelo menos um modelo movido a eletricidade antes do final de 2010. Em 2012 uma parcela, pequena, mas significativa, dos veículos vendidos na Europa, Japão e Estados Unidos será movida a eletricidade. Não estamos falando de um futuro distante, estamos falando de um espaço de três anos apenas. Acredita-se que, em 2020, 10% de todos os veículos vendidos no mundo utilize a eletricidade como fonte de energia.

Já para o Brasil acho difícil termos algum veículo movido a eletricidade antes de 2015. Estamos indo na contramão das tendências dos países desenvolvidos, enquanto o mundo (até mesmo os EUA) procura carros menores, nosso mercado de SUV’s nunca esteve tão aquecido.

Alemar Rena: Há outras reais possibilidades de uso de energia mais limpa no transporte para além do álcool, da eletricidade e do petróleo?

FA: Naturalmente existe muita pesquisa em andamento e existem outras possibilidades como os veículos movidos a célula combustível (tecnologia que utiliza o hidrogênio e o oxigênio para gerar eletricidade), ou os veículos movidos a energia solar. Mas no momento apenas os veículos alimentados por bateria de íons de lítio e movidos a eletricidade é que estão próximos de ser comercialmente viáveis. Os veículos movidos a energia solar possuem ainda uma performance deficiente e os veículos a célula combustível são ainda muito caros.

Para mais informações sobre a história dos motores elétricos, visite (em inglês): http:// inventors.about.com/library/weekly/aacarselectrica.htm Alemar S. A. Rena

 

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ, em Março de 2009, atualizada em 2011]

ECONOMIA CRIATIVA DA WWW

Pessoas comuns, como você e eu, com as nossas pequenas colaborações no espaço virtual, podem ganhar dinheiro com isso? E mais: querem? O que queremos afinal de contas com toda essa troca de conteúdos e produtos digitais das mais diversas categorias em espaços como Myspace, Overmundo, entre tantos outros?

Hernani Dimantas, em um texto chamado “A Multidão Hiperconectada”, afirma que “não existe colaboração sem generosidade. Colaboração não é ajuda. (…) Tem a ver com projetos de interesse comum”. Bem, se são projetos de interesse comum, então também estamos sendo generosos com nós mesmos… Generoso consigo e com o outro, ou, melhor ainda, através do contato, da conexão com o outro. Acho que aqui está parte da resposta para nossa pergunta: o homem contemporâneo, pelo menos os mais antenados na vivência em rede, intui que há algo de especial e valioso na conexão, no agenciamento, na multiplicidade, na coletividade.

A massa é burra, mas a coletividade é inteligente. Uma coletividade em que seus agentes possuem autonomia para criar, falar, em fim, agir livremente; porque se não há autonomia, então voltamos a ser massa. Assim, o “lucro” nessas trocas é que todos produzimos o que gostamos de produzir, porque nos divertimos com isso, e disponibilizamos para os outros. Os outros, sem exigirem nada de você, fazem o mesmo. Entramos então em uma lógica do escambo mesmo, só que trocamos coisas que adoramos fazer; e buscamos na rede outras coisas que gostamos de ter por perto, mas não sabemos exatamente como fazer.

O que isso demonstra (pelo menos creio que seria uma hipótese a ser considerada) é que se nos darmos oportunidades reais de vivência coletiva em rede e com autonomia, podemos ser seres sociais mais inteligentes.

Deve-se lembrar, no entanto, que a troca de conteúdo intelectual, como histórias, poemas, músicas, jogos, receitas médicas, receitas de pratos etc., durante grande parte da história humana foi algo natural, fazia parte dos processos cotidianos de invenção e comunicação oral das comunidades. Mas algo mudou, principalmente desde que a imprensa foi inventada e difundida nos quatro últimos séculos. Juntamente do nascimento da ferramenta “livro”, que passou a ser (re)produzida em escala, foi necessário que se criasse a figura de um responsável pelo que o texto impresso dizia (anteriormente, como o texto era oral, um produtor ou um responsável ia automaticamente junto do texto); um forma de controle pela nobreza e clero. A esta figura, hoje ubíqua, foi dado o nome de autor.

Desde o advento do capitalismo e incremento dos meios de comunicação de massa, a função social da figura autoral se transformou, sendo apropriada e reelaborada pela chamada indústria cultural; na verdade, sem o autor e suas novas funções, provavelmente a indústria do conteúdo nem mesmo existiria. Como se pode imaginar, estas funções estão diretamente relacionadas à idéia de comércio do produto intelectual, da promoção, da propagação em escala nacional e transnacional dos conteúdos.

Mas o que acontece quando todos passam a poder produzir, acessar e publicar conteúdos utilizando-se de meios e tecnologia atual, assim como os produtores profissionais da indústria do conteúdo? O filósofo francês Jean Baudrillard disse certa vez: “Se um indivíduo morre sua morte é um acontecimento considerável, enquanto que se mil indivíduos morrem, a morte de cada um é mil vezes menos importante”. Isso é o que vem acontecendo com a WWW. São milhões de produtores desapegados do comércio e do lucro trocando suas pequenas criações.

No entanto, estudos mostram que, de todo o capital que circula na WWW, grande parte está concentrado nos bolsos de pouquíssimas empresas, como a Yahoo!, a Microsoft, a Google, etc. Igualmente, importantes empresas do mercado tradicional lá estão, buscando migrar parte de suas estratégias de mercado para o universo da rede. Elas buscam dar continuidade ao seu mecanismo de promoção e venda em grande escala dos produtos que desenvolvem. Basta verificarmos a lista dos 15 nomes mais pesquisados no Google no Brasil; lá se encontram nomes como Laura Pausini, Legião Urbana, Madona, Simpsons, Flinstones e Scarlett Johansson.

Por fim, certamente criadores marginais (amadores ou profissionais) que postam seus trabalhos na Web para download podem fazê-lo também com fins de promoção pessoal ou, no caso dos mais profissionais, como parte integrante de uma estratégia de negócio de sucesso; e ainda há sempre os pequenos com grandes idéias que vez por outra se tornam hits multimilionários; exemplos, entre muitos, são o filme Bruxa de Blair, o You Tube e o site The Million Dollar Homepage, este último de um garoto inglês que foi para a Web atrás de dinheiro para pagar a faculdade; ele pôs no ar uma página em que vendia cada pixel, para fins publicitários, por 1 dólar. A idéia era simples, mas diferente, e pegou. O garoto levou muito mais do que o milhão de dólares almejado de início e ganhou exposição em escala global. O endereço, para quem ainda não viu, é: www.milliondollarhomepage.com.

Alemar S. A. Rena

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ]

DIVERSIDADE, CRITICIDADE E OS MEIOS

 

Foto: Marcelo Maia //

A palavra cultura é de origem latina, quando estava ligada às atividades agrícolas; vem do verbo latino Colere que quer dizer cultivar. No entanto, seu significado atualmente parece bem complexo. Ampliando seu sentido, seríamos levados a crer que a cultura deveria ter alguma relação com a idéia de formação ou construção de um tecido polifacetado de relações sociais, simbólicas, técnicas, epistemológicas etc. das quais um povo poderia se apropriar para diversos fins.

Mas hoje a cultura seria, talvez em sua forma mais contundente, o plano pelo qual instituições economicamente guiadas se apropriam do conteúdo intelectual e o transforma em produtos para o comércio. Assim, a idéia de cultura passa a ter estreita relação com a dimensão social pela qual se manifestam relações de poder de ordens midiáticas, econômicas, estéticas e sociais.

Infelizmente, percebe-se que a divulgação de informação nos meios de massa não cultiva primariamente um repertório diversificado, democrático, dinâmico de possibilidades estéticas e conceituais, mas a perpetuação de formas (ou fórmulas?) que são eleitas para serem transformadas em propriedades privadas e comercializadas em grande escala. Convivemos assim com uma pletora de referências simbólicas e conceituais que não refletem a diversidade, a vontade interativa e participativa do corpo social. Poder-se-ia argumentar que é justamente a repetição, a comodidade e a não-interação que os espectadores dos meios de massa aspiram. Mas acredito que não. Tal argumentação parece falsa, pois não há vontades essenciais e intrínsecas a um espectador/leitor; ele, a maneira como seu cérebro está arranjado, o que deseja, os valores que preza e como age é em grande parte construção do meio e atualmente da própria indústria da informação de massa um-todos (as TVs, os jornais, as revistas, as rádios tradicionais).

Assim, quando, por exemplo, um diretor de uma novela defende a superficialidade dos debates que propõe dizendo que respeita os desejos e a capacidade de aprofundamento de seu espectador, tal diretor ignora que, neste contexto, a massa já se encontra no estado de, como propuseram os pensadores Adorno e Horkheimer já na década de 40, “sociedade alienada em si mesma”, resultado do “círculo da manipulação e da necessidade retroativa” implementado pelos próprios meios. Seus desejos ou sua capacidade de refletir sobre temas complexos em sua complexidade são em certo nível resultantes da própria qualidade da novela que este espectador assiste há anos e que lhe serve muitas vezes como principal fonte de reflexão sobre tais temas. Obviamente, tal discussão não tem nada a ver com a questão de que devemos ou não deixar de ver novela. Assistir à novela ou não assistir é uma falsa questão; o problema surge quando a discussão da novela das oito sobre o clone humano ou sobre a tensão racial vira o único palco de debate de temas tão sérios (quando muito acompanhada de rapidíssimas e superficiais exposições sobre o tema em um telejornal diário), para uma enorme fatia da população em um país que precisa tão urgentemente refletir sobre tantas realidades emergenciais e complexas ao mesmo tempo.

O que se tem hoje, portanto, é um estado de coisas (do qual a novela é apenas um exemplo) que faz com que a informação que chega até a esmagadora maioria seja precária. Então onde exatamente está o problema?

A indústria de conteúdo almeja o lucro máximo a partir de um custo mínimo. O comprometimento com a qualidade conceitual vira luxo entre estes meios centralizados. Para estas empresas é preciso a todo custo ampliar a massa de potenciais consumidores vendendo conteúdos cada vez mais baratos e facilmente reconhecíveis e assimiláveis. E a cultura? A cultura vira refém desta situação. A cultura, em seu sentido mais amplo hoje, passa a ser aquilo que é difundido por este esquema.

Creio que há um vácuo no segmento de publicações culturais de menor fôlego mas justamente mais independentes, experimentais e refletivas. Penso que esta pode ser uma das saídas (juntamente da descentralização radical oferecida pela Web, é claro) para o atual quadro. Precisamos de muito mais exceções. Precisamos valorizar mais e mais a informação menor, livre e crítica; precisamos nos desapegar um pouco do vício do dado desconectado, inútil, ligeiro, propagandístico ou estrangeiro e nos voltarmos mais para o entorno, para as questões fundamentais da nossa sociedade, e para as perguntas. Precisamos precisamente perguntarmos mais. E creio que isso não significa ser “cabeça”, chato, mas carregado de força transformadora, propositiva, inventiva.

Alemar S. A. Rena

 

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ]

DICAS DE REMIX NA SELECT

Está nas bancas a primeira revista SELECT, editada pela artista e pesquisadora Giselle Beiguelman. Contribuo, nesta edição cuja chamada de capa é “Abaixo a originalidade”, com dicas de sites sobre/para/com remix. No marasmo de publicações dedicadas à cultura, artes e tecnologia, a SELECT renova o ar com uma seleção de temas e abordagens corajosas e propositivas.

Acesse aqui o Facebook da revista.

Veja aqui a primeira edição (número 0) em PDF

 

SELECT número 1, nas bancas:

CONVERSANDO SOBRE TECNOLOGIA E CULTURA COM PAULO WAISBERG

Imagem por Jacob Charles Dietz —

Leia conversa com o arquiteto Paulo Waisberg sobre tecnologia, arquitetura, música, literatura entre outros assuntos. Paulo é mestre em arquitetura pela UFMG e seu escritório, o Architectural Adventures, atua numa vasta gama de projetos, desde arquitetura de lojas (por ex. a nova Loja do Ronaldo Fraga) até instalações artísticas, objetos e espaços efêmeros. É cheio de idéias interessantes e adora contar histórias sobre artes, tecnologia, cultura, ficção científica, etc. Tem de tudo isso aqui, visto por sua lente divertidamente excêntrica.

 

Alemar Rena: Paulo, para começarmos a conversa, queria que você arriscasse traçar um paralelo entre a música eletrônica do Kraftwerk na década de 70 — como estes alemães foram visionários a ponto de sua experimentação com os aparatos eletrônicos somente encontrar reverberações similares 20 a 30 anos depois –, a literatura cyberpunk e a tecnologia eletrônica da época. Sei que são assuntos que te interessam.

Paulo Waisberg: Pois é, não sei o que eles leram, mas a banda apareceu em um período de euforia da literatura de ficção científica. Era a época do Philip K. Dick, do Isaac Asimov, que é uma figura interessante, ele inventou a palavra robótica, inventou uma ciência que hoje é um campo disciplinar autônomo. E ele inventou isso em romance, em literatura. Então você vê o Kraftwerk em final de 60, eles estão vestidos de robô, isso antes da robótica existir. Eu aposto que eles estavam mais alimentados pela ficção científica do que qualquer outra coisa. Aí você vê o primeiro disco deles que eu até tinha em vinil… a capa é um equipamento, que não se sabe exatamente o que é, mas é cheio de cabos. Junto à música eles estavam sendo pré-hackers, estavam na verdade hackeando equipamentos para produzir aqueles sons. O sonoridade deles tem várias peculiaridades, mas eles não são os primeiros a produzir música eletrônica. Porque (já lá na década de 20) tinha um negócio chamado Teremin, não sei se você já ouviu falar.

Alemar: Conheço. É muito usado no Rock e na música eletrônica.

Paulo: Era uma peça metálica que na medida em que o cara ia se movendo, se aproximando e se distanciando, produzia um som chatíssimo, parecia uma maquininha de dentista. Hoje você pluga a peça em um sintetizador digital complexo e pode produzir o som que quiser. Mas o Kraftwerk foi pioneiro em incluir essas experimentações eletrônicas criando uma atitude que era palatável para o mundo. Na época eles trabalhavam com válvulas, os transistores já existiam, mas não eram usados em equipamento musical. Os jovens tinham essas revistas de ficção científica e de eletrônica que ensinavam como criar um radiozinho Galena (sem utilização de pilhas), ou como criar algum pequeno projeto de eletrônica. Nesse contexto, o Kraftwerk chegava a fazer apologia dizendo que queriam ser máquinas e no palco se vestiam de robôs.

Eu acredito que esses caras, tanto na música quanto na arquitetura, de alguma forma estão influenciados pela literatura. Na época em que a música Industrial começa a aparecer em fins de 80, na literatura de ficção científica você tinha o Cyberpunk, então era o William Gibson. Ele escreveu um livro que se chama Neuromancer (1984), que é um marco. É uma história policial… Mas a inovação do Gibson é de ir contra uma certa noção corrente na ficção científica cuja imaginação a respeito da tecnologia era de que ela ia cada vez se desenvolver mais e resolver os problemas da humanidade.

Alemar: Uma visão ainda meio modernista…

Paulo: Modernista… de um progresso contínuo e linear. E os acontecimentos da década de 60 e 70 provaram o contrário. Se por um lado você tem todo tipo de desenvolvimento de melhoras através da tecnologia, você tem por outro o crime, a subversão, que também estão aptos a se utilizar dessa mesma tecnologia. E tem um rastro no desenvolvimento, toda nova tecnologia gera um monte de velhas tecnologias, que também são susceptíveis de serem usadas dependendo da situação.

Alemar: E novas tecnologias podem gerar novas demandas e problemas às vezes até maiores do que o problema ou a necessidade inicial a ser atendida.

Paulo: De certa forma a nossa sociedade está viciada em tecnologia; nós somos junkies de tecnologia. Toda nova tecnologia cria uma nova dependência, e a gente está sempre esperando um novo aparato. Então o Gibson inaugurou uma nova forma (ou detectou, diagnosticou) uma certa atitude que estava presente no final da década de 80, início da década de 90. O herói ou anti-herói do Neuromancer também faz coisas erradas, e os bandidos usam de tecnologias e muitas vezes os equipamentos não estão funcionando direito. E isso é um outro lado da tecnologia, se você cria uma máquina muito complicada, alguma hora ela vai pifar ou ela não vai funcionar conforme estava especificado. E aí você tem que lidar com isso; é mais uma faceta da realidade tecnológica.

Alemar: Que é a noção de complexidade. Ela está imbricada em outros âmbitos também, não é? A sociedade como um todo está ficando cada vez mais complicada.

Paulo: E mais suscetível a problemas. E ao longo dessa década, um movimento que começou a aparecer ali e eu acredito que vai permear esse futuro próximo é um engendramento de processadores em todos os objetos. Então a sua latinha de refrigerante vai te falar a temperatura, seu celular reage e conversa com a torradeira elétrica, conversa com o seu computador, você pode preparar a torrada do seu escritório. Os objetos terão um certo grau de percepção do mundo e vai haver percepção entre objetos.

Alemar: E isso já acontece com o Bluetooth.

Paulo: O Bluetooth foi feito para isso, você entra numa loja e as ofertas de acordo com o seu interesse vão aparecendo no seu celular. Isso é maravilhoso, incrível, só que na medida em que os objetos conversam, de acordo com o programa pré-estabelecido, você está cada vez mais susceptível a programação. Então, quando você entra na loja, você não está vendo as ofertas que te interessam, você está vendo uma gama de possibilidades que a loja acha adequada.

Alemar: A mesma coisa acontece quando você entra na Amazon ou dá uma procura no Google; os cookies na sua máquina guardam informações sobre seus hábitos naquele espaço virtual, que são lidas por essas lojas de maneira a personalizar a sua navegação ali.

Paulo: Essas rotinas todas são feitas para isso… Mas o que isso tem a ver com arquitetura? De um tempo pra cá, os arquitetos, muito contaminados pela arte, começaram a entender que se você pode pôr sensores e automatizar certos eventos no espaço, isso diz respeito à arquitetura. Então a arquitetura começou, nas instalações, a criar espaços que interagem, e agora isso está se encaminhando pro mainstream, pro lugar comum (não sei se essa é a melhor palavra) da produção de espaço.

Alemar: Pro cotidiano…

Paulo: Pro cotidiano, é. O que coloca um novo desafio, não é? Pra você começar a interferir, a “envenenar” o espaço você tem que começar a aprender certas coisas que não estão estritamente no campo da arquitetura. E é aí por exemplo que dispositivos como o Arduino entram em jogo (na Internet, veja mais sobre o Arduino em www.arduino.cc).

Essas plaquinhas são micro-controlers, são computadorzinhos, têm um processador, uma memória RAM e algumas portas que são input e output. Ele é um tijolinho, e tem uma porta USB; você pluga no computador e instantaneamente você pode acoplar sensor de luz, de movimento, pode ativar um motor. O Arduino é uma tecnologia aberta, mais ou menos na mesma lógica do Linux, Copyleft, tudo que você desenvolve faz parte do commons, e ele é feito para artistas, designers sem conhecimento específico de eletrônica ou de programação. E isso faz parte de uma tendência de incluir certos grupos que a rigor não teriam conhecimentos técnicos dentro das potencialidades da tecnologia digital aplicada ao espaço, é o chamado Physical Computing. Este é um termo que se vai ouvir muito, está ficando comum.

Se na década passada a ênfase estava em criar interfaces amigáveis para você operar softwares, a ênfase agora está e criar interfaces amigáveis para você operar no espaço. É quase um desenvolvimento natural, e ele vai um pouco contra a lógica do equipamento fechado que tem uma interface amigável, pois esse é um paradigma velho. É interessante para um objeto super novo, com o qual pretende-se desenvolver uma série de possibilidades, mas o paradigma onde ele está operando, eu imagino que chegou ao limite. Objetos de comunicação como o telefone celular, por exemplo, vão continuar a ter melhorias sutis, mas não vai haver uma grande revolução sobre esse paradigma da tecnologia fechada. O que vai começar a acontecer é sua casa passar a reagir a uma outra coisa, seu carro que já tem um processador, ou vários processadores dentro, vai começar a interagir com o celular. Esses aparelhos vão começar a comunicar e a gente vai começar a interferir nisso também, a hackear. Há um potencial artístico enorme, um potencial de criatividade.

No caso da música, o que tenho visto é que ela vai expandir da criação pura do som para uma produção de ambiente, e esse é um potencial que não foi totalmente explorado na música. Não é mais som somente, a gente já tem 15 anos de multimídia, então é som, vídeo, espaço, e isso compõe uma experiência musical mais ampla. Você pode gravar, remixar a música, mas ela atinge sua realização num determinado lugar, num momento. E aí ela converge vídeo-arte, vídeo-produção e arquitetura. Não só música como estímulo auditivo; o evento em que ela ocorre é que passa a ser onde o significado é produzido. Tem-se arquiteto, músico e video-maker trabalhando juntos ou um cara que é capaz de transitar nessas várias áreas. E a gente vê os dois acontecendo.

Alemar: Ela não seria uma interrupção de um fluxo para chamar atenção pra si, ela se encaixaria no fluxo no qual o espaço já se encontra naturalmente. Paradoxalmente, embora o som seja parte do fluxo de eventos cotidianos, quando vira música tem uma tendência de ser algo à parte, intencionado. Já o espaço desenhado se sobrepôs quase por completamente ao espaço natural, sendo ele hoje parte natural do fluxo. E ainda, hoje há muito espaço pensado para o som, mas não o som pensado para o espaço.

Paulo: E a música se desvencilhou do espaço, o suporte onde a informação musical hoje se encontra é muito pequeno, é um MP3 player, você pode por a obra toda dos Beatles em um pen-drive obsoleto, mas você não consegue reproduzir a performance dos Beatles tal como aconteceu em 1960, porque isso é impossível. E é aí que está o valor da performance, ela só acontece naquele momento porque ela é uma combinação de uma série de fatores, ela não é só informação.

Alemar: Embora toda busca da comunicação, começando pelos desenhos em cavernas, pela palavra oral, pela palavra impressa, pelos livros, pela gravação do som e da imagem, etc. é uma busca por essa representação impossível.

Paulo: Cada mídia tem um limite de comunicabilidade, ela só comunica até um determinado ponto. Então na hora em que você reproduz você está optando pela representação de uma determinada faceta de uma realidade que às é muito mais ampla. Voltando um pouco atrás, acho que depois de 15 a 20 anos lidando com interfaces cada vez mais amigáveis e mecanismos de reprodução de informação cada vez maiores, as pessoas estão começando a voltar para o que é específico do momento e o que é específico do ambiente.

Alemar: O próprio fato de uma pessoa adquirir autonomia para poder interferir, criar e editar esses ambientes e lidar com esses aparelhos de uma forma mais livre implica em uma liberdade que nos leva a uma questão política. É uma busca pela liberdade que antecede a essa questão ou aquela, e que diz respeito ao homem, em um aspecto filosófico. De fundo, a abertura em relação à manipulação midiática ou tecnológica não é resultado de uma busca anterior de liberdade, isto é, de construção de uma certa autonomia individual que interessa a todas as áreas do saber e do fazer?

Paulo: Numa conversa que tivemos outro dia você estava falando da experimentação que as bandas tiveram com instrumentos elétricos. O Jimi Hendrix foi lá, pegou a guitarra, quebrou-a no chão e pôs fogo e aquilo era um gesto de libertação. Este gesto ainda tem uma força simbólica forte; ele estava pegando um aparelho que ele recebeu, um equipamento industrial, provavelmente uma guitarra cara de alta qualidade, quebrando pra produzir som ou só pelo prazer de quebrar. Você não vai fazer isso com esse Macintosh hoje (o Mac gravando a conversa sobre a mesa), mas o gesto análogo agora é pegar isso aí e quebrar. Quebrar não literalmente, mas abrir para ver o que tem dentro e utilizar disso para além do uso para o qual ele foi designado. O produto limita a gama das coisas que você poderia fazer com ele.

Alemar: E a interface virtual? Intervir sobre o software, criar com as possibilidades de combinações que os programas no computador oferecem não são um ato de libertação em relação ao designo inicial? Eu posso quebrar um monte de coisas no nível do software, explodindo o seu sentido.

Paulo: Mas você somente estaria operando no mundo das idéias… Em um colóquio com a Mariana Hardy (designer que atua em Belo Horizonte) ela falou uma coisa interessantíssima. Há um milhão de pessoas fazendo produtos gráficos agora, neste momento, há uma infinidade de variações em cima do círculo, até o ponto em que é difícil criar uma coisa que é nova, você vai estar criando uma variante, isso porque de uma certa forma você está operando no mundo das idéias. Faz parte da interface te dar a sensação de que você tem liberdade, mas na verdade muitas vezes você está criando uma variante que a interface te habilita, editando imagem, texto e som. Pára por aí. Há uma quantidade enorme de variantes possíveis, mas como há uma quantidade enorme de pessoas produzindo em cima destas variantes, o poder de transformação, o significado está enfraquecendo. E a gente vê isso com o produção gráfica. Você vai na Internet hoje e vê cem mil coisas bonitas, até um hora que você cansa. São só imagens bonitas. A mesma coisa acontece com a música eletrônica, produzida com os loops, que hoje é super bem acabada.

Mas a mesma coisa acontece ou acontecia com a música acústica, que oferece um número de instrumentos limitados, como no Rock a “cozinha” baixo, guitarra e bateria, que aparentemente chegou a um ponto ou próximo a um ponto de esgotamento de possibilidades de construção de novas linguagens. Creio que a música eletrônica oferece incrível liberdade de construção de texturas, sonoridades, ritmos, enfim, linguagens que trazem uma riqueza enorme de combinações. É claro que isto depende de quem e como se opera o software. Os samples que vêm de fábrica realmente limitam a produção, mas as possibilidades de mudança de seus parâmetros são infinitas, embora dentro de variações pré-condicionadas, como você coloca… Mas voltamos a uma questão que é anterior à técnica, isto é, de formação dos indivíduos, que depende, entre outras coisas, da atuação dos meios de comunicação, de educação formal, tradição familiar, social, etc. Mas também esta formação depende da técnica ao mesmo tempo que condiciona seu uso e a criação de novas técnicas.

O que eu acho que é importante pensar quando se cria alguma coisa é que você está operando na realidade, no mundo dos objetos, das pessoas, das coisas. Quando você pega um martelo, ele tem um peso, ele tem um balanço, ele serve pra dar uma pancada numa coisa. E além disso ele tem uma certa abertura, você pode usar o martelo de milhões de jeitos, inclusive como uma arma, para arrancar um prego, para nivelar algo. Ele possui um certo grau de abertura que todo objeto tem. As interfaces tentam simular essa abertura. Mas, de novo, o sentido das coisas é operar no mundo real, e às vezes a gente perde essa dimensão nas infinitas possibilidades de manipular um dado. Acho que aí é político, um artista não lida com uma planilha no Excel, com um monte de números. Ele lida com a realidade, com a complexidade, e quando você manipula os modelos oferecidos pelos softwares eles não correspondem à realidade. A simulação, por mais bonita que ela seja, não corresponde à realidade do espaço, e eu acho que um dos encaminhamentos da próxima década vai ser nos reaproximarmos da realidade física. Voltando à colocação da banda de Rock com guitarra, baixo e bateria, muito do som digital ainda bebe nos ruídos do mundo real. É o barulho do vento no bambu, a furadeira elétrica, a cigarra no meio da tarde, são essas reverberações que te fazem reagir à música. Creio que voltar a essa materialidade das coisas é um dos caminhos, uma das premências do agora.

Alemar: Jean Baudrillard, em textos como A transparência do Mal, Sociedade de Consumo e Simulacros e Simulação fala de um lado negativo em relação à virtualidade generalizada na vivência e em processos criativos na atualidade, embora não argumente, pelo menos não em textos que eu conheço, uma volta para uma fisicalidade como possibilidade de um contra-ponto. Exercita apenas uma crítica. Como você vê a questão da fisicalidade e do virtual?

Paulo: Muito do que Baudrillard estava falando faz sentido, ele e um monte de outros caras. Se você vê esse copo aqui, ele não é estritamente um objeto. Primeiro ele é um objeto de design. Tem todo um histórico de design, mas você tem a experiência dele mediado por uma série de conhecimentos, uma série de outros significados que são comuns à cultura que a gente vive. Então, em casos extremos, quando você chega em casa e vê TV ou procura entretenimento na Internet por duas ou três horas, aquela informação que está passando parece tão importante na sua vida quanto qualquer outra coisa. A gente vive em uma sociedade em que boa parte da nossa experiência é mediada.

Alemar: Ele pensa numa hiper relação simulada. Na verdade não é uma simulação comum. Há um grau na escala da simulação que a gente subiu nas últimas décadas que é um grau novo. A realidade é suplantada por uma realidade de muitos intermeios. É como se ela passasse por um filtro muito longo de intermediação até chegar à gente. A TV é real e cria uma realidade, isso não é problema; diria até que em algum nível (às vezes mais, às vezes menos) ela se relaciona de fato com uma ocorrência dada no mundo geofísico. O problema é você achar que aquela TV, aquela realidade na sua frente, representa aquela outra realidade geofísica de uma forma muito mais pura ou objetiva do que ela o faz de fato… Isso é importante porque o discurso do jornal, por exemplo, da realidade como ela é… como é que eles o chamam? Imparcial, objetivo, gera um situação meio absurda quando o espectador não tem fermentas intelectuais para pensar seus significados, o que é o mais comum. Mas voltando à questão da fisicalidade e virtualidade.

Paulo: Então, é este princípio de interferir nos equipamentos, mudar de uso, subverter, pegar produtos que foram descartados, trazê-los de volta e dar uma vida nova para eles. Eu acho que ainda tem muito potencial: você estava falando de um certo problema ambiental. O maior objeto humano que pode ser visto do satélite é o monte de lixo de Nova Iorque; não é a muralha da china, não é Nova Iorque, é um monte de lixo. Então a gente produz uma quantidade enorme de resíduos no nosso modo de vida e alguns deles são descartados e escondidos antes de exaurir a possibilidade de uso e comunicação deles. Mas eles ainda estão lá, e acho que todos deveriam entender um pouquinho sobre como eles funcionam e o custo que existe na sua produção.  Para mim, entender como as coisas funcionam, alem de ser estimulante, é um princípio fundamental da existência na cultura.

A gente tem chicletes, máquina de lavar, avião porque num determinado momento a nossa civilização resolveu imaginar que estas coisas existiriam. Agora o que me admira é como hoje em dia as pessoas não têm a menor curiosidade de saber como um iMac funciona, de onde vêm as peças; ou então como é que um carro começa a andar quando você gira a chave. De alguma forma a gente involuiu neste aspecto. Porque esses objetos cercam a gente, eles interferem na nossa vida. Eles são susceptíveis de entendimento e isso não está restrito a um grupo de engenheiros lá em Taiwan ou nos EUA.

Alemar: Mas isso não tem a ver um pouco com a complexificação de demandas que a gente tem hoje e de uma especialização radical para que essas demandas sejam atendidas nessa sociedade industrial. As pessoas têm pouco tempo para ser o que eles chamam de prosumer (produtor e consumidor) mesmo no mundo virtual, isto é, uma pessoa que dá conta de produzir informação nesse nível intelectual que você está falando e ao mesmo tempo consumir.

Paulo: Eu acho que isso tem vários lados. Por um lado muito destas demandas são criadas pela sociedade de consumo, além disto não se tem interesse em abrir o conhecimento sobre a produção das coisas.

Alemar: As pessoas não têm?

Paulo: Os fabricantes não têm. Então se o iMac pudesse não ter nenhum parafuso para abrir, eles iriam ficar muito felizes.

Alemar: Por quê?

Paulo: Um argumento comum é que especializando você consegue um produto melhor, a lógica por trás de uma máquina como a Ferrari. Porque tudo tem que funcionar num devido lugar, aquilo não está susceptível a ser hackeado, a ser modificado porque isto compromete o desempenho. Isto combinado a um desinteresse: desde que as coisas estejam funcionando, está tudo bem. A grande massa não é educada para se interessar pelo funcionamento das coisas.

Alemar: Não é educada ou geneticamente você tem uma parcela maior de pessoas menos agitadas nesse sentido.

Paulo: Tem a ver com a cultura, porque isso varia. Lá nos EUA, por exemplo, você encontra pessoas que vivem a idéia do DIY (do-it-yourself). Existem canais de fornecimento de material para a construção e comunidades que compartilham conhecimento sobre a fabricação das coisas.

Alemar: Mas por que alguns fogem desses parâmetros e ficam debatendo, discutindo, pensando e buscando fazer alguma coisa que subverte os padrões de funcionamento? Em menor ou maior escala.

Paulo: Há várias ilhas de subversão. Em um nível extremo você tem a subversão total. O cara é anarquista e sai quebrando coisas. Em um nível menor, você está num sistema e começa a fazer pequenas operações que vão desestruturar ou modificar um sistema. E tem gente que está variando em cima de um sistema que já está predeterminado, aprimorando, adicionando algum pequeno detalhe, que é a grande massa das pessoas que estão criando.

Tem um monte de teorias a respeito do aparecimento de coisas novas. Durante muito tempo dava-se ênfase ao indivíduo criativo, o mito do gênio criador. A nossa história da arte, do desenvolvimento do conhecimento é toda povoada pelo aparecimento dessas personagens singulares. Durante o séc. XX, alguns estudiosos começaram a aplicar estatística em criatividade e começaram a aparecer um monte fatos interessantes, por exemplo: começaram a ver que  algumas sociedades são mais criativas do que as outras e que determinadas épocas produziram muito mais novidades do que outras. Então existem algumas tentativas de explicação do porque isso acontece.

Certos sistemas sociais possuem características que habilitam o aparecimento de novidades, de inovação. Alguns extremistas dizem que não existe o gênio criador, a idéia iria aparecer de qualquer forma naquela sociedade, naquela época… tem um cara chamado Csíkszentmihályi que tem umas teorias interessantíssimas: para ele a criatividade deve ser entendida através de um modelo dinâmico. O aparecimento de uma idéia nova depende da interação de três variáveis: uma é o indivíduo que vai ter a idéia, que vai ter o insight; outra, as pessoas que compõem aquele grupo disciplinar, os gatekeepers que falam “essa idéia é boa”. Alem disto, é variável o estado de conhecimento em que certa disciplina está, e sua condição para absorver idéias novas.

A física tem todo um instrumental que habilita o aparecimento de novas idéias, a matemática tem outra, a música tem outra. Os campos disciplinares são  sistemas que podem possibilitar uma idéia nova até um certo ponto. O nosso mundo da matemática, se a gente ainda usasse os algarismos romanos, dificilmente poderia ser criado. Mas em uma sociedade que tem vários indivíduos criativos produzindo você tem várias idéias surgindo ao mesmo tempo, o que põe aí a ênfase em um grupo que diagnostica uma idéia como pertinente, válida.

Isso tudo não exclui o aparecimento de um gênio que é capaz de transformar um domínio e campo de conhecimento.

O Einstein, por exemplo, se ele fosse para ganhar os prêmios Nobel que merecia, ganharia pelo menos três. Então o cara era extraordinário. No entanto, na época em que ele produziu a física moderna, apareceu também a química moderna, modelos matemáticos novos… tinha um monte de gente extraordinária. Então aí você começa a olhar, aquele período histórico tinha alguma coisa que habilitou o surgimento de várias idéias novas.

Mas voltando à tecnologia, ela vem dando errado em muitos aspectos, embora muitas coisas deram certo maravilhosamente bem. Então você tem as máquinas de guerra, os tanques, a tecnologia nuclear que países como o Iran ou Coreia do Norte tem acesso, conhecimentos perigosos que estão se transformando em domínio público. Hoje em dia se você quiser saber como se fabrica uma bomba nuclear você acha na Internet… é claro que é difícil você conseguir o plutônio, mas se você conseguir pode fazer uma.

Alemar: Mas também há as máquinas de guerra no contexto das comunicações. São máquinas de poder de interferência e de controle.

Paulo: Pois é, um exemplo desse impressionante é o Al Jazeera, que é uma rede de TV que mimetiza a BBC. E é interessante de onde ela veio, do Qatar. Eu nunca tinha ouvido falar dele; fui pesquisar e descobri que é um pequeno país que não tem histórico nenhum de democracia, que tortura e reprime a oposição. Agora, porque um país que sempre torturou qualquer opinião dissidente foi criar uma rede de comunicação para difundir informação pelo mundo? Hoje em dia a Al Jazeera tem contratos com TV’s no mundo todo, ela é, por exemplo, fonte de conteúdo para a Band. Porque eles descobriram que é muito mais barato e eficiente investir em equipamento civil e contratar pessoas do que investir em armamento. Você consegue manipular as opiniões das pessoas para fazer o que for militarmente mais adequado.

Alemar: E o mesmo acontece com a CNN nos EUA.

Paulo: Acho que o mundo ocidental já descobriu isso há algum tempo, mas o que é novidade é que sistemas que são estruturalmente repressivos, sociedades que não estão abertas a diálogo descobriram que elas também podem fazer isso. Isso é novidade. Então é o caso do Hezbollah no Líbano. O Hezbollah é um grupo de guerrilha que tem o apoio do Iran e é um grupo Xiita que começou como reação à ocupação Israelense no sul do Líbano; eles eram mais uma das milícias na guerra. A partir de um certo ponto o Hezbollah descobriu que era mais fácil conseguir controle, poder, virando partido político. E hoje em dia o Hezbollah tem uma rede de TV, uma rede de comunicação paralela ao governo do Líbano, e eles estão numa guerra para tomar o controle do Líbano através dos meios políticos.

Num determinado momento da pós-modernidade grupos de guerrilha radicais descobriram que eles podem interferir numa sociedade pelos caminhos legais e através da mídia. E isso põe em cheque a nossa própria estrutura democrática; até que ponto você pode ouvir e deixar um grupo que tem um ideal de destruição de uma sociedade crescer na mídia. Se você é de fato democrático e tolerante com a diversidade você tem que dar liberdade para eles expressarem mesmo quando eles estão expressando a própria destruição de sua sociedade. Nós vamos encarar na próxima década mais um paradoxo das nossas sociedades democráticas.

Alemar: Obrigado!

Paulo: Obrigado Alemar! Para mim foi um prazer conversar sobre esses assuntos… acho que pensar sobre tecnologia de forma geral é muito importante para ser criativo na produção do design e arquitetura.

CINEMA, LITERATURA E VÍDEO GAME

Recentemente tive oportunidade de ver um amigo jogar God of War no PlayStation 3. Fiquei impressionado – talvez por não acompanhar o universo dos games tão de perto – não com as características da interatividade típicas de jogos de ação, com muitas lutas e sangue, mas particularmente com duas coisas: a presença cada vez mais eficiente da literatura e narrativa e a aproximação cada vez maior entre o vídeo game e o cinema.

A primeira já era uma tendência forte desde o nascimento do game, mas tem se tornado cada vez mais central na ação, e a segunda foi recentemente muito potencializada pela resolução mais alta e maior capacidade de processamento das imagens oferecidas pelos novos aparelhos.

O realismo das cenas incentivam os criadores de games a apresentar grandes passagens como se fossem partes de um filme 3D, próximos em qualidade visual daqueles hits da Pixar e Disney. Quanto à literatura, em God of War a narrativa e a trama são inspiradas nas histórias clássicas da mitologia Grega. Trata-se de uma reficcionalização do universo mítico clássico.

As possibilidades do vídeo game atual sugere novos caminhos para as narrativas interativas num futuro próximo, com menos foco na ação crua e mais experimentação com a trama e a linguagem. A interatividade pode deixar de ser apenas um recurso experimental nas artes eletrônicas ou webartes, ou a pura diversão nos games, e passar a contribuir para uma estética cotidiana e popular seja no cinema, seja nas letras.

APRESENTAÇÃO: “DO AUTOR TRADICIONAL AO AGENCIADOR CIBERNÉTICO”

Leia apresentação de Eduardo de Jesus do livro Do autor tradicional ao agenciador cibernético: do biopoder à biopotência, que lancei pela editora Annablume (SP, 2009).

Alemar Rena —

 

Onde está o autor? Texto: Eduardo de Jesus

O autor e a autoria, assim como os complexos processos sociais, econômicos, políticos e culturais detonados por essas instâncias, marcam, de alguma forma, a produção cultural. Tanto aquela mais arraigada nas tradições cristalizadas ao longo do tempo, quanto as mais contemporâneas, viabilizadas, entre outros, nos produtivos e tensos encontros com o ambiente digital, as redes telemáticas e seus potentes processos de territorialização e desterritorialização. Além das formas culturais que já conhecíamos, passamos a experimentar outras situações, tensionamentos e derivações na produção artística e cultural contemporânea. Essas passagens são motivadas, entre outros fatores, pelo modo como nossas formas de produzir e experimentar a cultura passaram a se ligar também a toda uma base tecnológica que altera os processos de subjetivação, as formas de presença e a circulação de bens culturais.

Se tomarmos uma vertente mais pessimista poderíamos certamente pensar em torno de um colapso cultural, de uma espécie de fim da cultura. No entanto, o mais sensato é pensar que com os meios digitais estamos estabelecendo não uma cultura ou lógica cultural, mas uma metacultura, como afirma Jean-Louis Weissberg, “com incidências contraditórias movimentando dinâmicas menos legíveis que parecem a primeira vista”. É preciso estabelecer uma nova perspectiva que consiga dar visibilidade às contradições e paradoxos desse contexto cultural que vem sendo aos poucos construído e acoplado à lógica tradicional. Não se trata de empreender uma tentativa, quase inocente, de uma possível situação apaziguante e pouco crítica, mas buscar através de reflexões, experiências e enfretamentos típicos da vida social contemporânea algum indício que sinalize o que vem sendo alterado e como. Não há mais volta. Nosso envolvimento com as diversas tecnologias, nas muitas dimensões e instâncias da vida social, não permite mais um recuo.

Alemar Rena parte desses mesmos questionamentos e possibilidades abertas pela tecnologia para tentar decifrar os caminhos e descaminhos pelos quais a figura do autor atravessa na paisagem cultural contemporânea. Nessa sociedade nitidamente marcada pela intensa infiltração do capital nas relações sociais e pela forte incidência das diversas tecnologias no cotidiano mais ordinário é que nascem situações culturais que podem nos levar a criar, como afirmou Guattari, uma era “dissensual pós-midiática”.

Longe das dicotomias e das visões estanques, Rena nos propõe uma reflexão – um “pulsar investigativo” – em torno das relações de autoria na contemporaneidade, especialmente aquelas mais ligadas ao ambiente telemático. Com uma verve de natureza transdisciplinar, Rena desenvolve as linhas de força que criaram e deram sustentação à idéia da autoria, numa espécie de “arqueologia do autor” convocando o pensamento de teóricos como Bakhtin, Barthes, Eco, Rorty, Fish e Compagnon entre outros. Foucault, Deleuze e Guattari são também autores centrais nessa reflexão. De Foucault, Rena aborda o seminal “O que é um autor”, que serve de referência para um profícuo diálogo com as noções desenvolvidas pelo autor e os desdobramentos atuais no domínio do capitalismo cognitivo. Da mesma forma as noções dos processos de subjetivação de Guattari e os agenciamentos maquínicos de Deleuze dão corpo à reflexão que se inclina na descrição de um cenário dinâmico e sempre em conflito.

Nesse cenário são colocadas em jogo as diversas formas de controle que orbitam na produção cultural, os circuitos de legitimação gerenciados pelos meios de comunicação de massa e as alterações nos sistemas de distribuição como alguns dos pontos que favorecem o surgimento do “ciberagenciador”, uma outra forma, ainda mais instável, que o pólo da autoria assume na contemporaneidade. Nesse pólo, em distintas configurações individuais e coletivas, amplia-se o grau de complexidade da autoria, que passa a fazer parte de um processo de territorialização e desterritorialização típico das redes telemáticas. Em sua reflexão, Rena explora as situações em rede como as webarts e outras off line como o tecnobrega de Belém do Pará e seus cd´s oficiais e piratas ao mesmo tempo. Essas manifestações, por mais distantes que sejam, fazem parte de uma outra forma de agenciamento, que freqüentemente é coletivo, aberto e bastante fluido ultrapassando as restrições da cultura de massa e da própria tradição cultural, dando lugar a uma outra forma de autoria, que circula entre novos arranjos de operadores e circuitos.

A reflexão empreendida por Alemar Rena nos mostra um trajeto aberto, com a descrição de diversas experiências, no qual podemos perceber que as práticas culturais contemporâneas são reconfiguradas em movimentos de contaminação e sobreposição. Durante o trajeto as situações podem mudar nos mostrando as instabilidades inerentes ao ambiente da rede telemática. Não há estabilidade neste contexto e talvez por isso Rena fale de trajetos. Essa opção, longe de reduzir a questão colocada acaba por ampliá-la ainda mais questionando os limites da autoria e da figura do autor. Esse trajeto-processo dá contorno a um pensamento que cria suas definições na urgência do movimento, na fluidez das interações mediadas e no confronto criador com uma paisagem cultural absolutamente contraditória que se desenvolve diante de nós.

Eduardo de Jesus é graduado em Comunicação Social pela PUC Minas, Mestre em Comunicação pela UFMG e Doutor pela ECA/USP. É professor da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas. Faz parte do Conselho da Associação Cultural Videobrasil.

A ERA DA NÃO LITERATURA: EM 140 CARACTERES

Foto: Cara Barer —

Segue uma entrevista dada à revista Diversa da UFMG sobre novos formatos literários na cibercultura. Ela saiu em forma de uma matéria, na edição de número 18 (baixe o PDF aqui), quase inteiramente dedicada à comunicação em rede. Outros profissionais também foram consultados para a matéria, como poderão ver.

POR ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA

Microblog ajuda a reconfigurar formas literárias e define novas posições para leitores e autores Romeu e Julieta estão no Twitter. A ideia de levar os protagonistas da obra de William Shakeaspeare partiu da Royal Shakespeare Company (RSC), companhia de teatro inglês criada em 1879. O projeto recebeu o nome de Such Tweet Sorrow e sua proposta é reescrever Romeu e Julieta pelo Twitter. Atores da RSC encarnaram os personagens do dramaturgo e estão desenvolvendo a trama por meio da rede social, num misto de improviso e atuação roteirizada. Os protagonistas interagem não apenas entre si, mas também com os leitores, contando fatos cotidianos, postando fotos e vídeos.

Essa e outras experiências mostram que a internet está mudando os parâmetros de criação artística. “É possível que nossos filhos venham a viver em um mundo onde as grandes fontes de referências serão coisa do passado. Eles estariam mais conectados a uma lógica da inteligência coletiva, da construção em processo e da rede”, diz o mestre em Teoria da Literatura pela UFMG e doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP Alemar Rena.

Microblog no qual os usuários podem escrever textos – ou tweets – de até 140 caracteres, o Twitter, além de estimular conversas cotidianas, está se transformando em ambiente de produ- ção literária. A nova modalidade tem até nome: Twitteratura. Especula-se que o termo tenha surgido quando dois estudantes da Universidade de Chicago tiveram a ideia de escrever um livro recontando alguns dos maiores clássicos da literatura mundial em vinte tweets ou menos.

As redes sociais surgem com ares de novidade, mas sua lógica vem de longa data. “Antes de conviverem com as tecnologias de comunicação em massa, as pessoas trocavam conteúdos intelectuais que conformavam a cultura, os hábitos, a vida cotidiana através de processos extremamente ligados a uma lógica de comunidade, proximidade geográfica, valores compartilhados na tradição”, diz Alemar Rena. Para ele, a comunicação pela internet representa o retorno a uma modalidade de troca mais espontânea, marginal e comunitária.

Rena destaca que a literatura não é um tipo de produção cultural estanque e que, ao longo dos séculos, já assumiu diversas formas como a contação oral, o pergaminho, o livro e, mais recentemente, o hipertexto e a twitteratura. “É verdade que essas mudanças estão se dando cada vez mais rapidamente e isso é algo sobre o qual devemos refletir, pois acarreta uma série de efeitos em diversas áreas, como a educação, a psicologia, o meio ambiente e a economia”, diz. Para o escritor C.S. Soares, no cenário atual, a twitteratura pode significar uma importante contribuição à produção literária: “As experiências sempre renovaram a literatura. Já dizia o escritor e teórico francês Maurice Blanchot que o futuro da literatura está na ‘não literatura’”.

Nem tão específico assim

Na literatura, cada tipo de texto possui sua especificidade – linguagem, suporte, tamanho, entre outras. Assim também acontece com a twitteratura, que, além da economia de palavras, tem a velocidade de postagem como um dos seus principais atributos. “A relação com o tempo sempre variou entre as sociedades e os períodos históricos. Hoje há uma explosão de informação disponível e acessível, e as pessoas tendem a possuir atenção muito mais difusa, o que cria hábitos de leitura diferentes do que estávamos acostumados, para o bem ou para o mal”, teoriza Alemar Rena.

A questão da interatividade também é uma característica marcante da Twitteratura, mas como mostra C.S. Soares, não é exclusiva das redes sociais. Segundo ele, o leitor tem cada vez mais necessidade de configurar seu ambiente de leitura. “O poder de selecionar o texto a ser lido está na mão do leitor, que vai interagir com a própria obra”, diz. Como exemplo, o escritor cita as Fanfics, muito populares entre os adolescentes. Fanfic é abreviação do termo fan fiction, ficção criada por fãs. Nelas, usuários utilizam-se de personagens e universos ficcionais que não foram criados por eles.

Os fãs podem fazer alterações no texto, pois códigos de programação aceitam entradas do leitor-usuário e essas informações passam a fazer parte da história. Segundo C.S. Soares, “essa interação não é uma novidade, uma vez que o livro é uma rede social em que interagem autores, leitores e referências: pessoas e livros conversam entre si”. O que o Twitter faz é potencializar o processo de abertura da obra. O escritor destaca que as narrativas publicadas em redes sociais incorporam o diálogo com os leitores e podem invadir o fluxo do texto literário. “A experiência do autor e a visão do leitor acrescentam camadas de criação à obra. Ambas podem coexistir e ser complementares”, diz.

Para o doutorando em Cinema pela UFMG e escritor Leo Cunha, o diálogo proporcionado pelo Twitter é fascinante e se reflete diretamente no texto. “Na Twitteratura, temos acesso direto ao leitor e a seus comentários. Essa interatividade é essencial, pois nos estimula a responder, comentar, retwittar.” O autor conta, ainda, que muito do que escreveu na mídia social deu-se sob influência direta de comentários de outros usuários.

Velho novo texto Característica marcante do Twitter, a limitação de caracteres também se impõe à literatura. “Essa ideia de escrever histórias com poucas palavras não é nova, faz parte de um gênero chamado flash fiction”, ressalta Alemar Rena. Além dessa modalidade, outras poderiam ser comparadas ao Twitter, como lembra C.S. Soares. “Aforismo, koan, wordplay, provérbios etc, todos têm alguma relação com as formas breves e, logo, com o Twitter. A própria Bíblia de Robert Estienne, impressor francês do século 16, o primeiro a rodar o chamado livro sagrado com a estrutura de capítulos e versículos, revela que o texto breve ajuda, por exemplo, na manutenção do foco e da memorização”, ressalta. Opinião semelhante tem a jornalista e pesquisadora de redes sociais Raquel Camargo: “Podemos encontrar coisas parecidas nas produções dadaístas, por exemplo. Ainda podemos citar os haicais e os epigramas”, diz.

O haicai é um poema de origem japonesa, formado por 17 sílabas e que contém alguma referência à natureza. Os epigramas, por sua vez, são composições poéticas curtas, criadas na Grécia antiga. Nesse sentido, tanto o Twitter como o epigrama e o haicai seriam formas de produção textual calcadas na ideia de síntese e exigiriam brevidade do escritor. Alemar Rena destaca, no entanto, uma diferença entre esses textos e aqueles produzidos no Twitter. “Uma distinção crucial é que as pequenas cenas criadas no Twitter podem ter continuidade, resultando em uma grande história com pequenos flashes de 140 caracteres. Aqui percebemos outra qualidade da comunicação em rede: a obra em processo, em que o início e o desfecho são menos importantes do que o desenrolar”.

Autoria

Se no universo dos livros a autoria é mais explícita e definida, o mesmo não acontece na twitteratura. “Por mais que se assine um texto, é muito mais fácil reproduzi-lo, integral ou parcialmente, inclusive alterando o contexto. E nem sempre se atribui a autoria correta de um tweet”, diz Leo Cunha. O escritor também cita a questão dos retweets, que, além de se configurarem como forma de citação, possuem aspecto autoral: “Quem dá um retweet está dizendo ‘olha que legal isso que o fulano escreveu’, mas também ‘esse é um texto que eu assinaria embaixo, que eu gostaria de ter escrito’”, afirma. Para Leo Cunha, ao repassar os tweets de outras pessoas, os usuários fazem escolhas e, por meio do conjunto, pode-se perceber uma visão de mundo e, portanto, certo olhar autoral.

Alemar Rena destaca, no entanto, que é importante separar autoria de propriedade intelectual. “Antes da invenção da imprensa por Gutenberg, em meados do século 15, e mesmo séculos depois, a autoria importava não como fonte para acúmulo de grandes riquezas. Isso passou a acontecer a partir do Renascimento”, diz. Naquela época, a figura do autor passa a ser importante, uma vez que garante a validação dos discursos e permite à nobreza e ao clero exercer controle sobre eles. Segundo o pesquisador, o avanço das tecnologias de comunicação de massa e o fortalecimento do capitalismo e dos setores privados oferecem condições para duas práticas: a divulgação massiva dos produtos, culminando na publicidade e propaganda, e o surgimento de uma indústria da cultura. “Nesse contexto de comercialização da inventividade social, o autor assume espaço especial, pois através da promoção de sua imagem – muitas vezes é elevado ao status de celebridade –, a indústria passa a edificar impérios da cultura em escala global”, explica.

Para Alemar Rena, a autoria remete a uma referência originária do discurso: “É claro que na prática nenhum discurso tem origem, pois eles são tecidos a partir da trama de outros discursos anteriores, mas gostamos de acreditar que tal origem existe porque facilita a contextualização da informação, a produção de sentido, a atribuição de credibilidade e, no caso do comércio, a fixação de um proprietário absoluto”.

A AUTORIA NA CRIAÇÃO HOMEM-MÁQUINA-HOMEM

The author has to  work as the agent of the masses. He can lose himself in them only when they themselves become authors, the authors of history.

Hans Magnus Enzensberger —

Colocado de uma forma simples e direta, pode-se dizer que, invariavelmente (ou quase?), entre o criador e a criatura existe técnica e tecnologia. Este fato nunca foi tão determinante, nem para se pensar a figura do criador, nem para se pensar a criatura (isto é, a obra, o produto criado), como hoje.

Mas ao longo da história, principalmente nos últimos 100 anos, as ferramentas no universo da criação vêm se complexificando. Na música, por exemplo, teríamos, em uma escala temporal: o uso do corpo (palma, o pé, os sons guturais, etc.), a palavra, instrumentos rústicos como tambores, instrumentos sofisticados como o violão celo ou o saxofone, as partituras, a gravação analógica, instrumentos elétricos e instrumentos e gravação/produção virtuais/digitais. Cada uma dessas etapas históricas correspondem a uma série de outros rearranjos sociais, econômicos, políticos.

Mas dentre todas essas etapas, atualmente a revolução digital é a que mais interessa – senão porque representa a maior mudança histórica na forma como nos comunicamos desde a escrita ou o nascimento da imprensa com Gutenberg (cuja importância para o renascimento europeu é patente) – simplesmente porque ela é a marca do nosso tempo e perpassa as mais diversas atividades artísticas ou cotidianas. A complexidade ferramental oferecida pelas produções digitais não encontra ecos na história humana. Pela primeira vez a importância dada ao criador passa a ser sistematicamente dividida com outros, sejam eles programadores de ferramentas digitais, sejam eles remixadores das produções digitais em circulação.

A problematização social e política da figura do autor-criador levada a cabo ao longo do séc. XX por pensadores como Roland Barthes e artistas como Duchamp, ganha novos contornos perante os fenômenos contemporâneos. O pensador francês Jean Baudrillard certa vez disse: “Se um indivíduo morre sua morte é um acontecimento considerável, enquanto que se mil indivíduos morrem, a morte de cada um é mil vezes menos importante”. Hoje percebemos algo análogo. Com a tomada de território surpreendente da cibercultura, onde um usufruidor de conteúdos e informações facilmente se transforma em produtor, o Autor, com “a” maiúsculo, se torna a exceção. Milhões de pequenas vozes emergem. Se fica mais fácil falar, fica igualmente mais difícil ser ouvido em grandes escalas. Mas já não podemos falar somente de corpos, indivíduos, mas de uma multidão, uma voz coletivizada; a potência está no acontecimento emergente dos infinitos nós. O grande evento está no conjunto de pequenos movimentos mais autônomos, e não mais na figura centralizada de um grande autor ou na forte atração de algum produto da inventividade.

Assim, na Web não interessa tanto o fato de que um produtor de conteúdo possa usar um apelido para conversar com esse ou aquele internauta, publicar neste ou naquele site; a anonimidade vai interessar ao internauta especialmente porque não faz diferença se ele usa seu nome real ou se usa uma identidade virtual. É essa indiferença que distingue um autor cibernético de um autor tradicional.  Indiferença que se faz sentir nas webartes colaborativas, nas redes peer-to-peer e suas incessantes trocas ilegais de propriedade intelectual, nos assíduos leitores de blogs de anônimos, na troca esquizofrênica de imagens nos fotologs, nos milhares de arquivos que carregam os iPods, nas ajudas recíprocas das comunidades virtuais, na aversão à propriedade intelectual do copyleft, na desconstrução hierárquica, no desinteresse pelas categorias estanques, etc.

A relação homem-máquina

No entanto, no ato da criação e no uso cotidiano, a ferramenta não cessa de automatizar o corpo, de lhe impor os gestos repetitivos e não adaptativos que ela demanda. Veja-se a língua, uma das tecnologias mais complexas que temos. Sobre ela, dirá Barthes: “assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar […], é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada.” Mas Barthes também lembrará que é na trapaça, na esquiva da estrutura da língua que a literatura se inscreve enquanto “revolução permanente da linguagem”.

Da mesma forma, é nas margens de indeterminação dos algoritmos, dos códigos, dos comandos, das funções que os softwares e hardwares carregam, que o produtor cibernético vai realizar sua invenção. O artista-programador irá ainda mais além ao criar suas próprias ferramentas a partir de outras. Como aponta o pesquisador Arlindo Machado “o que faz o verdadeiro poeta dos meios tecnológicos é justamente subverter a função da máquina, manejá-la na contramão de sua produtividade programada”.

Certamente a produção contemporânea traz profundas marcas dos plug-ins e dos presets dos softwares, estampando em muito do que vemos cotidianamente padrões e repetições. (É claro que, antes, grande responsável é a homogeneização conceitual que a mídia e o mercado produzem). Mas os softwares, ao oferecerem aberturas nas suas possibilidades complexas de combinação e manipulação de informação (vide a música eletrônica, um dos bons exemplos), certamente criam espaços potentes para se colocar em prática grande liberdade na construção de linguagens e significados.

É interessante notar que, tanto no sentido da predefinição de possíveis linguagens, quanto na abertura permitida para a combinação e edição, a autoria se inicia na concepção da ferramenta e suas constantes atualizações, e por essa razão deve ser considerada compartilhada. Apontar autores únicos para obras digitais se torna uma tarefa difícil, visto que a criação com a máquina se faz em um entre-lugar, entre as habilidades artísticas do usuário dos aplicativos e as habilidades inventivas dos programadores que prevêem os usos potenciais que um software carrega (a interface, os algoritmos, as soluções de programação, o dimensionamento do potencial criativo, o potencial de flexibilização dos usos, etc.).

Se o criador, no nível da linguagem, marca sua importância, pois sua postura determina uma maior ou menor sujeição às pré-determinações da ferramenta, ele, enquanto ciberagenciador, não deixa de apresentar profundos contrastes nos âmbitos econômicos, sociais e políticos em relação ao autor tradicional como bem conhecemos ao longo dos últimos séculos, graças às complexas linguagens de programação que condicionam a Web e suas formas de comunicação e compartilhamento de conteúdo intelectual e inventivo. Na anonimidade confortável que insurge desses processos em rede parece estar uma resistência à lógica da propriedade conceitual, ao culto do estrelato, ao comércio como único fim imaginável; não uma nova racionalidade mas um “novo cenário de diferentes atos racionais – um horizonte de atividades, resistências, vontades e desejos que recusam a ordem hegemônica, propõem linhas de fuga e forjam outros itinerários alternativos”, dirão Michael Hardt e Antonio Negri.

Alemar S. A. Rena

[Publicado originalmente no Jornal Letras, BHZ. O título original no jornal foi Nem criador, nem criatura, o meio]